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 Apesar de ter vivido apenas 31 anos, Júlio Diniz foi autor de várias obras, tais como: As Pupilas do Senhor Reitor, A Morgadinha dos Canaviais e Os Fidalgos da Casa Mourisca

      Monumento a Júlio Diniz no Porto    

 

JÚLIO DINIZ RETORNA                          

(Espírito Júlio Diniz (Joaquim Guilherme Gomes Coelho) - Obra: Do País da Luz - Médium: Fernando de Lacerda)

     Para te ser agradável volvo à Terra.

     A minha passagem por aqui não me deixou saudades.

     Fui um triste. As minhas pobres obras recendem todas a esse vago olor de tristeza, como uma igreja recende a rosmaninho depois das festas da paixão do Senhor.

     É que representavam já também a recordação das festas idas da minha mocidade e dos meus sonhos.

     Os meus personagens eram os meus amigos.

     A cada um eu dava um pedacito da minha alma; em cada um eu fazia um figurino pelo qual desejaria ver uniformizada a humanidade. Era um idealista, bem o sei; e por isso as minhas pobres obras são faltas de calor.

     Nelas tudo é tranquilo, nelas tudo é simples, como eu idealizava a vida no meu alvorecer dela.

     Pouco a pouco esse ideal desfazia-se. Eu ia entrando pela vida fora e ia ficando como uma pobre árvore enfezada a que um mau desenvolvimento não tivesse deixado dar flores nem frutos, e a que um outonal vento precoce arrancasse, uma a uma, as amarelecidas folhas. Obras de um triste, herança para tristes. Ainda assim, como seria feliz o mundo se Deus permitisse que todas as garridas fossem como Clara; todas as irmãs fossem como Margarida; todos os prevaricadores como Daniel; todos os padres como o Reitor, todos os médicos como o meu querido João Semana!

     Cito os meus filhos das Pupilas, porque são os diletos do meu coração, conquanto muito queira aos outros também, porque cada um representa um sentimento novo por mim adorado, e um desejo por mim manifestado à face de uma sociedade onde já me não dava bem. Criava em cada personagem mais uma pessoa para a minha sociedade ideal.

     Com eles vivia, com eles amava, com eles me enternecia.

     Tinha a doce ilusão de que aquele pequenino mundo, por mim criado, era o mundo real. Nele me recolhia, nele me escondia, e nele amava e sofria.

     Falava com os meus amigos ilusórios como o faria com amigos reais, se a realidade mos desse daquele estofo; e a Deus devo mercê de me ter encarnado tanto nessa ilusão, permitindo que a vida na Terra me não deixasse os ressaibos de amargura que costumam afligir os tristes e os incompreendidos como eu.

     Podes compreender assim, meu irmão, que tudo me havia de deslizar tranquilamente, e que até a morte havia de tranquilamente chegar para mim.

     E assim foi. Pouco a pouco o meu corpo foi-se desfazendo pela tuberculose, a doença dos sonhadores e dos poetas; e eu ia-me sentido morrer suavemente como se fosse entrando em um doce sonho dos da minha infância. Tinha a sensação e parecia que a esperança de ir entrar no mundo que a minha fantasia havia criado, e que ia encontrar lá a minha Guida, o Tomé, o Manuel Quintino, o Reitor, o João Semana, todos, todos os meus amigos, todos os meus filhos, todos os representantes de um sonho não realizado.

     A vida desaparecia suavemente. Os mais zelosos e cariciosos cuidados não a prolongavam. Nem amigos, nem enfermeiras conseguiam que se aditasse mais um dia àqueles que me estavam destinados. As minhas contínuas mudanças de terra eram mais para condescender com a amizade aflita que me rodeava do que para satisfazer ao meu desejo de viver. Passava horas e dias embevecido no sonho, alheado ao mundo exterior que me rodeava.

     A tuberculose, que tem para todas as suas vítimas o característico de lhes desfazer a vida num permanente sorriso de esperança, não foi avara para mim na distribuição desse piedoso sentimento. Só houve uma diferença, nascida naturalmente do meu modo de ser e de ver: - é que essa doce esperança que iluminou os meus últimos tempos e aconchegou tepidamente os meus derradeiros dias, não me dava a ilusão de melhores: - dava-me a certeza da morte e a consoladora visão da vida eterna, bebida nas orações que minha santa mãe me ensinara nos longos serões provincianos.

     Que amor podia eu ter a um mundo que me não compreendia? Não me queixo dele, porém. Se algum de nós tem queixas do outro, é ele que as tem minhas e não eu. Ele é assim, com os seus contrastes, com as suas dores, com os seus enganos; e quem quiser apreciá-lo e gozá-lo tem de o aceitar tal qual Deus o fez.

     Os que o não aceitam assim é que o ofendem.

     Uns revoltam-se, outros lamentam-se e outros resignam-se. Eu fui dos últimos. Comecei por lamentar-me quando me sentia isolado. Não era este o mundo que o meu coração e o meu cérebro apeteciam; e daí as lamentações entristecidas dos meus primeiros versos. Gemidos de aves levadas para regiões desconhecidas e inóspitas para elas! Reconheci depois que tinha de transigir e transigi.

     Não podendo aclimar-me ao mundo onde me encontrava, não sentindo em mim ideias de revolta nem temperamento para a lauta, enveredei por caminho novo: - criei um mundo para mim só. Não seria um mundo perfeito nem ideal; mas era o mundo como eu o desejaria.

     Também nele se debatiam paixões; também nele havia largo lugar para amar e sofrer; para fazer o bem e fazer o mal; mas o sofrimento e a maldade eram só o corolário preciso para fazer sobressair a bondade e o bem, e por fim se deviam confundir na grande harmonia universal.

     Perdoa-me, meu amigo, que eu tenho falado só de mim; mas é que sendo a primeira oportunidade que tenho depois de daí ter saído de falar de mim e da minha obra, quero justificar-me e justificá-la.

     Graças a Deus creio que, apesar da sua insignificância, não é por essa obra que virá mal ao mundo; e sinto-me tranquilo e feliz na sua lembrança por ver que, se nela os fortes não encontram instrumento para a demolição, os tristes, os simples e os sonhadores encontrarão refúgio e refrigério. E neste mundo todos têm direito ao seu quinhão de gozo, visto que todos têm o seu quinhão de dor.   

INÍCIO

A  POSSE  É  APENAS  CIRCUNSTANCIAL:  HOJE  EM  MINHAS  MÃOS,  AMANHà NAS  TUAS,  MAIS  TARDE...  NINGUÉM  DETÉM  A  AURORA  OU  O  PODER.  OS  RECURSOS  PASSAM,  A  VIDA  TRANSITA.  AMO  A  VIDA,  MAS   APIADO-ME  DOS  QUE  SOFREM  E  NÃO  ME  POSSO  PERMITIR  A  SEVERIDADE  OU   A   ASPEREZA  PARA  COM  NINGUÉM...

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