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RELIGIÃO

Autor: (Allan Kardec).

     Dissemos que o verdadeiro objetivo das assembleias religiosas deve ser a “comunhão de pensamentos”; é que, com efeito, a palavra “religião” quer dizer “laço”. Uma religião, em sua acepção nata e verdadeira, é um laço que “religa” os homens numa comunidade de sentimentos, de princípio e de crenças. Consecutivamente, esse nome foi dado a esses mesmos princípios codificados e formulados em dogmas ou artigos de fé. É neste sentido que se diz: “a religião política”; entretanto, mesmo nesta acepção, a palavra “religião” não é sinônimo de “opinião”; implica uma ideia particular; a “de fé conscienciosa”; eis porque se diz também: “a fé política”. Ora, os homens podem envolver-se por interesse num partido, sem ter fé nesse partido, e a prova é que o deixam sem escrúpulo quando encontram seu interesse alhures, ao passo que aquele que o abraça por convicção é inabalável; persiste ao preço dos maiores sacrifícios e é a abnegação dos interesses pessoais que é a verdadeira pedra de toque da fé sincera. Contudo, se a renúncia a uma opinião, motivada pela interesse, é um ato de desprezível covardia, é, ao contrário, respeitável quando fruto do reconhecimento do erro em que se estava; é, então, um ato de abnegação e de razão. Há mais coragem e grandeza em reconhecer abertamente que se enganou, do que persistir, por amor-próprio, no que se sabe ser falso e para não se dar um desmentido a si próprio, o que acusa mais teimosia do que firmeza, mais orgulho do que razão, e mais fraqueza do que força. E mais ainda: é hipocrisia, porque se quer parecer o que não se é; além disso é uma ação má, porque é encorajar o erro por seu próprio exemplo.

     O laço estabelecido por uma religião, seja qual for o seu objetivo, é, pois, um laço essencialmente moral, que liga os corações, que identifica os pensamentos, as aspirações, e não somente o fato de compromissos materiais, que se rompem à vontade, ou da realização de fórmulas que falam mais aos olhos do que ao espírito. O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre os que ele une, como consequência da comunidade de vistas e de sentimentos, “a fraternidade e a solidariedade”, a indulgência e a benevolência mútuas. É nesse sentido que também se diz: a religião da amizade, a religião da família.

     Se assim é, perguntarão, então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores. No sentido filosófico o Espiritismo é uma religião, e nós nos glorificamos por isto, porque é a doutrina que funda os elos da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas: as mesmas leis da natureza.

     Por que, então, declaramos que o Espiritismo não é uma religião? Porque não há uma palavra para exprimir duas ideias diferentes, e porque, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto; desperta exclusivamente uma ideia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse uma religião, o público não veria aí senão uma nova edição, uma variante, se se quiser, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; não o separaria das ideias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes se levantou a opinião pública.

     Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual do vocábulo, não podia nem devia enfeitar-se com título sobre cujo valor inevitavelmente se teria equivocado. Eis porque simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.

     As reuniões espíritas podem, pois, ser feitas religiosamente, isto é, com o recolhimento e o respeito que comporta a natureza grave dos assuntos de que se ocupa; Pode-se mesmo, na ocasião, aí fazer preces que, em vez de serem ditas em particular, são ditas em comum, sem que por isto as tomem por “assembléias religiosas”. Não se pense que isto seja um jogo de palavras; a nuança é perfeitamente clara, e a aparente confusão é devida à falta de um vocábulo para cada ideia.

     Qual é, pois, o laço que deve existir entre os espíritas? Eles não estão unidos entre si por nenhum contrato material, por nenhuma prática obrigatória. Qual o sentimento no qual se devem confundir todos os pensamentos? É um sentimento todo moral, todo espiritual, todo humanitário: o da caridade para todos, ou, por outras palavras: o amor do próximo, que compreende os vivos e os mortos, desde que sabemos que os mortos sempre fazem parte da Humanidade.

     A caridade é a alma do Espiritismo: ela resume todos os deveres do homem para consigo mesmo e para com os seus semelhantes; eis porque se pode dizer que não há verdadeiro espírita sem caridade.

     Mas a caridade é ainda uma dessas palavras de sentido múltiplo, cujo inteiro alcance deve ser bem compreendido. E se os Espíritos não cessam de a pregar e a definir, é que, provavelmente, reconhecem que isto ainda é necessário.

     O campo da caridade é muito vasto: compreende duas grandes divisões que, em falta de termos especiais, podem designar-se pelas expressões: “Caridade beneficente”  e  “Caridade benevolente”. Compreende-se facilmente a primeira, que é naturalmente proporcional aos recursos materiais de que se dispõe; mas a segunda está ao alcance de toda gente, do mais pobre ao mais rico. Se a benevolência é forçosamente limitada, nada além da vontade pode estabelecer limites à benevolência.

     Que é preciso, então, para praticar a caridade benevolente? Amar ao próximo como a si mesmo: ora, se se amar ao próximo tanto quanto a si, amar-se-o-á muito; agir-se-á para com outrem como se quereria que os outros agissem para conosco; não se quereria fazer mal a ninguém, porque não quereríamos que no-lo fizessem.

     Amar ao próximo é, pois, abjurar todo o sentimento de ódio, de animosidade, de rancor, de inveja, de ciúme, de vingança, numa palavra, todo desejo e todo pensamento de prejudicar; é perdoar os inimigos e retribuir o mal com o bem; ser indulgente para as imperfeições de seus semelhantes e não procurar a palha no olho do vizinho, quando não se vê a trave no seu; é cobrir ou desculpar as faltas dos outros, em vez de se comprazer em as pôr em relevo por espírito de aviltamento; é ainda não se fazer valer à custa dos outros; não procurar esmagar a pessoa sob o peso de sua superioridade; não desprezar ninguém por orgulho. Eis a verdadeira caridade benevolente, a caridade prática, sem a qual a caridade é palavra vã; é a caridade do verdadeiro Espírita, como do verdadeiro cristão; aquela sem a qual aquele que diz: “Fora da Caridade não há salvação”, pronuncia sua própria condenação, tanto neste quanto no outro mundo.

     Quanta coisa haveria a dizer a tal respeito! Que belas instruções nos dão os Espíritos incessantemente! Sem o receio de alongar-me e de abusar de vossa paciência, senhores, seria fácil demonstrar que, em se colocando no ponto de vista do interesse pessoal, egoísta, se se quiser, porque nem todos os homens estão maduros para uma completa abnegação, para fazer o bem unicamente por amor do bem, seria fácil demonstrar que tem tudo a ganhar em agir deste modo e tudo a perder agindo diversamente, mesmo em suas relações sociais; depois, o bem atrai o bem e a proteção dos bons Espíritos; o mal atrai o mal e abre a porta à malevolência dos maus. Mais cedo ou mais tarde o orgulhoso será castigado pela humilhação, o ambicioso pelas decepções, o egoísta pela ruína de suas esperanças, o hipócrita pela vergonha de ser desmascarado; aquele que abandona os bons Espíritos por estes é abandonado e, de queda em queda, se vê, por fim, no fundo do abismo, ao passo que os bons Espíritos erguem, amparam aquele que, nas maiores provações, não cessa de se confiar à Providência e jamais se desvia do reto caminho; aquele, enfim, cujos secretos sentimentos não dissimulam nenhum pensamento oculto de vaidade ou de interesse pessoal. Então, de uma lado, ganho assegurado; do outro, perda certa; cada um, em virtude do livre-arbítrio, pode escolher a chance que quer correr, mas não poderá queixar-se senão de si mesmo pelas consequências de sua escolha.

     Crer num Deus Todo-Poderoso, soberanamente justo e bom; crer na alma e em sua imortalidade; na preexistência da alma como única justificação do presente; na pluralidade das existência como meio de expiação, de reparação e de adiantamento moral e intelectual; na perfectibilidade dos seres mais imperfeitos; na felicidade crescente com a perfeição; na equitativa remuneração do bem e do mal, conforme o princípio: a cada um segundo as suas obras; na igualdade da justiça para todos, sem exceções, favores nem privilégios para nenhuma criatura; na duração da expiação limitada pela imperfeição; no livre-arbítrio do homem, que lhe deixa sempre a escolha entre o bem e o mal; crer na continuidade que liga o mundo visível ao invisível; na solidariedade que religa todos os seres passados, presentes e futuros, encarnados e desencarnados; considerar a vida terrestre como transitória é uma das fases da vida do Espírito, que é eterna; aceitar corajosamente as provações, em vista do futuro mais invejável que o presente; praticar a caridade em pensamentos, palavras e obras na mais larga acepção da palavra; esforçar-se cada dia para ser melhor que na véspera, extirpando alguma imperfeição de sua alma; submeter todas as crenças ao controle do livre exame e da razão e nada aceitar pela fé cega; respeitar todas as crenças sinceras, por mais irracionais que nos pareçam e não violentar a consciência de ninguém; ver, enfim, nas descobertas da ciência a revelação das leis da natureza, que são as leis de Deus: eis o “Credo, a religião do Espiritismo”, religião que se pode conciliar com todos os cultos, isto é, como todas as maneiras de adorar a Deus. É o laço que deve unir todos os espíritas numa santa comunhão de pensamentos, esperando que ligue todos os homens sob a bandeira da fraternidade universal.

     Com a fraternidade, filha da caridade, os homens viverão em paz e se pouparão males inumeráveis, que nascem da discórdia, por sua vez filha do orgulho, do egoísmo, da ambição, do ciúme e de todas as imperfeições da Humanidade.

     O Espiritismo dá aos homens tudo o que é preciso para a felicidade aqui na Terra, porque lhes ensina a se contentarem com o que têm. Que os espíritas sejam, pois, os primeiros a aproveitar os benefícios que ele trás, e que inaugurem entre si o reino da harmonia que resplenderá nas gerações futuras.

     Os Espíritos que nos rodeiam aqui são inumeráveis, atraídos pelo objetivo que nos propusemos ao nos reunir, a fim de dar aos nossos pensamentos a força que nasce da união. Demos aos que nos são caros uma boa lembrança e o penhor de nossa afeição, encorajamento e consolações aos que estão necessitados. Façamos de modo que cada um recolha a sua parte dos sentimentos de caridade benevolente, de que estivermos animados, e que esta reunião dê os frutos que todos têm o direito de esperar.                                          INÍCIO

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