Albrecht

 

    Jules Michelet

 

O REFÚGIO DO POBRE

 

 

(Comunicação do Espírito Michelet - 24/12/1906 - Obra "Do País da Luz tomo 1" - Médium: Fernando de Lacerda)

 

 

     “O Senhor se fez o refúgio do pobre: Ele vem em seu socorro na ocasião da necessidade e no tempo da tribulação.”

 

     Não há em toda a Bíblia mais resplendente verdade do que esta.

    

     “O Senhor se fez o refúgio do pobre.”

 

     Só quando somos pobres de alegrias ou de bens, conhecemos a grandeza de Deus e a consolação de nos refugiar na sua crença e no seu amor.

 

     Conhece melhor o pobre a bondade do Senhor, dentro do seu sofrimento e da sua desgraça, do que o rico a quem Ele permitiu o gozo dos bens terrenos, ou o feliz a quem Ele agraciou com a sua generosidade.

 

     No gozo da felicidade ninguém se lembra de Deus; mas, no amarguroso da dor, não há ateu que resista à necessidade para sua alma, de procurar n’Aquele Ente misterioso, e em que crê não crer, o alívio para a pena que o tortura.

 

     O pobrezinho a quem falta o pão e o agasalho; a mãe a quem falta o filho, que é a alegria e o bem da sua vida; a esposa a quem falta o esposo; o rico a quem uma especulação intimida; o doente a quem uma dor avassala; o filho a quem morrem os pais carinhosos; enfim todos os que são tomados de uma sentimento de intensa amargura, a sua primeira ideia, o seu primeiro anseio e a sua maior esperança é refugiarem-se no Senhor. Não há nenhum homem ateu no foro íntimo da sua consciência, ao ver esvair-se a vida a um entezinho querido a quem muito ame e queira. Pode orar, suplicar ou blasfemar; mas o que não fica é empedernido na sua descrença como a mulher de Lot na sua curiosidade. Se este homem é bom e se lamenta, recorre involuntariamente, nos estos1 da sua dor, ao Deus que na sua felicidade negava.

 

     Pode, na sua súplica, fazer a evocação duvidosa de “Se existes, tem piedade de mim”, mas refugia-se n’Ele, quando já todas as coisas terrenas e materiais lhe negam a consolação, ou lhe afastam a esperança.

 

     Não há dor, por maior e mais intensa que seja, que se não dilua e atenue na súplica ao Senhor.

 

     Ele é o refúgio derradeiro de todos os infelizes, como a infelicidade é a pedra de toque de todos os corações. A infelicidade é o mais alto pedestal a que sobe a alma humana para se aproximar de Deus. Só podem alhear-se à ideia de Deus, aqueles a quem Ele, para provar, deu os mais generosos dons na Terra. Esses é que o podem esquecer. Quem não tenha esses dons, pode amá-lo ou blasfemar contra Ele; agora, o que jamais fará é desconhecê-lo.

 

     Se é simples e bom acolhe-se à sua esperança; se é desesperado ou insofrido acusa-o do seu pesar ou da sua miséria.

 

     Em ambos os casos a sua amargura lhe indicou Deus.

 

     No primeiro refugia-se n’Ele e Ele vem sempre em seu socorro. Quando mesmo o abandono parece mais manifesto, é quando, muitas vezes, o amparo é mais bondoso e certo.

 

     Quem pode apreciar aí a ação de Deus, se não há homem que conheça a sua própria ação, nem o móbil do mais insignificante ato da sua vida?

 

     Quem pode abalançar-se a supor justiça na sua observação sobre atos de que escapam, à sua análise e à sua crítica, os antecedentes e os consequentes?

 

     A razão humana, quando chega a um fato ou a uma ideia que não pode sobrepujar, desvaira.

 

     Envolve-a no mistério e apavora-se dela; ou contesta-a, para não reconhecer a sua fraqueza em não atingir a sua concepção.

 

     Quando não compreende não se limita a desconhecer, nega.

 

     Não hesita em avançar pelo absurdo desde que não seja violentada a capitular de ignorante.

 

     Como é bem mais belo o sentimento! Este adivinha onde aquela não distingue; ama onde aquela reflexiona; suplica onde aquela maldiz; resigna-se onde aquela desespera; sente-se bem onde aquela sofre.

 

     Unidos, os dois equilibram o organismo.

 

     A primeira qualidade da razão devia ser a razoabilidade.

 

     Nos fatos de natureza psíquica, quando a razão não atinja, deixe atuar o sentimento. Nos fatos de natureza física onde o sentimento hesite, deixe funcionar a razão. A razão é, de sua origem, fria e serena. Resultante da observação e do conhecimento adquirido, deve limitar-se a buscar, pacientemente, novos pecúlios que a enriqueçam. Negar o que não conhece é começar por negar-se a si própria, visto que tudo quanto é, e tudo quanto sabe, foi sempre negado e repudiado. Ela representa a soma de coisas que o sentimento, essa coisa vaga mas irresistível que impele o progresso humano, arrancou ao desconhecido.

 

     Que força é o sentimento? A fé, a esperança, a tenacidade são faculdades da alma, são manifestações do sentimento.

 

     Quem viu jamais a fé, a esperança, a tenacidade? Quem lhes conhece a forma ou a cor?

 

     Quem as pesou ou mesurou? Ninguém. Entretanto ninguém lhes pode negar a existência, nem desconhecer-lhes os efeitos.

 

     O sentimento é a manifestação da alma, como a razão é a manifestação do cérebro. A razão é o obreiro que a alma tem ao seu serviço. Obreiro cego, obreiro material, curto de intelecto, se a alma lhe não orienta as pesquisas, lhe não qualifica o trabalho, lhe não classifica as descobertas, lhe não ilumina o esforço e lhe não recompensa o sacrifício. A cada um o seu lugar.

 

     A razão sem o sentimento conduz o homem, nas coisas especulativas e espirituais, à dúvida, à descrença, à impotência, à negação.

 

     O sentimento sem a razão conduz, nas coisas materiais, ao desfalecimento, à covardia, à inapetência absoluta; nas coisas espirituais ao exagero, à superstição e à loucura.

 

     No justo equilíbrio está a verdade.

 

     Dê à razão a sua cota parte de trabalho naquilo que, com propriedade, se possa submeter à frieza da sua análise. Não queira ir onde a curteza da sua vista e do seu braço não possa chegar; e deixe que o sentimento se lhe substitua onde só a acuidade da alma, a previsão da esperança, o poder da fé podem alar-se.

 

     A galinha e a águia têm ambas penas e asas; mas nem a galinha pode voar, nem a águia viver na planície. Porque a galinha não pode desferir o voo não se segue que se lhe reconheça razão para negar a existência do espaço, nem os alcândores e os píncaros das serranias que parecem perfurar o céu, e aonde a águia vai e vive.

 

     Insensivelmente propendi para um assunto que só indiretamente vinha a pêlo2 do versículo que citei. É que, meu amigo, quando nos encontramos aqui, há só uma coisa que impressiona toda a nossa razão e toda a nossa filosofia: - a admiração de que haja quem negue a existência de Deus e da alma.

 

     O crente, na sua felicidade, lamenta o descrente, e admira-se e espanta-se de que ele não creia numa coisa tão simples, tão lógica e natural ao seu sentimento. O descrente arrepela-se e maldiz-se por ter descrito e contestado uma coisa tão evidente e tão lógica, como consequência da existência do homem, e de que tantas vezes, nos momentos angustiosos e expectante do seu viver, teve rebate e pressentimento, que a sua razão fria, ignorante e pretensiosa lhe obscureceu e afastou.

 

     Voltando ao assunto inicial, para terminar por hoje.

 

     Toda pessoa bem formada e com a sua razão e sentimento em justo equilíbrio, reconhece Deus e o ama. A razão descobre que não pode existir manifestação sem causa. Que tudo quanto vê e conhece é a manifestação. Não pode atingir a causa que origina essa manifestação. A sua vista é finita; o raio do seu olhar é estreito. A sua análise é incompleta, por isso. Deixe operar o sentimento. Deixe que a parte espiritual do seu ser complete a análise. Então o sentimento encontrará a causa de tudo, a origem de todas as manifestações. Essa causa é Deus. A manifestação é a criação.

 

     Compenetrando-se desta verdade, terá afastado de si muito motivo de angústia e de sofrimento. Na hora minguada da felicidade, louvará a Deus no justo gozo desse benefício; na hora eterna da dor, louvá-lo-á na súplica à sua piedade. Buscará refúgio n’Ele contra as agruras do mundo e de si próprio; e Ele virá sempre em seu socorro na ocasião da necessidade e no tempo da tribulação.

 

     A prece é o bálsamo que suaviza as dores mais acendradas, e que dulcifica e atenua as angústias mais miserandas.

 

     Na prece buscamos a esperança; na prece fortalecemos a fé.

 

     A prece é o caminho que nos leva ao refúgio em Deus; e é o conduto por onde nos vem o amparo e a consolação.

 

     A prece anima-nos nessa vida, e guia-nos e prepara-nos para as outras.

 

     A prece é o mais salutar pecúlio dos pobres. E pobres somos nós todos; os ricos e os pobres; os alegres e os tristes; os felizes e os desgraçados.

 

     Somos pobres, porque somos cegos; somos pobres, porque o nosso ser só na dor terá correção.

 

     “Levanta-te, Senhor Deus, eleve-se a tua mão e não te esqueças dos pobres.”

 

1 - estos = ardor, efervescência. 2 - a pelo = a propósito

 

(Jules Michelet, escritor e historiador francês (1798-1874). Liberal, professor do Colégio de França. Foi adversário do governo. Autor de uma História da Revolução Francesa, de História da França, A Mulher e O Mar). (Notas do compilador).

 

A  RAZÃO  QUE  NEGA  O  QUE  NÃO  CONHECE,  NEGA  A  SI  PRÓPRIA.

 

                                                                                                                                                             PRÓXIMO                                                                                                                                                                          INÍCIO