Foto iap

 

RAZÃO, TRABALHO E SOLIDARIEDADE

 

(Discurso do Sr. E. Müller no enterro de Allan Kardec - Revista Espírita de 1869).

     

Caros Consternados,

 

     Falo por último, junto a esta fossa aberta, que contém os despojos mortais daquele que, entre nós, se chamava Allan Kardec.

 

     Falo em nome de sua viúva, daquela que foi sua companheira fiel e feliz durante trinta e sete anos de uma felicidade sem nuvens nem misturas, daquela que compartilhou de suas crenças e de seus trabalhos, como de suas vicissitudes e suas alegrias; que, hoje só, se orgulha da pureza dos costumes, da honestidade absoluta e do desinteresse sublime de seu esposo. Ele é quem nos dá a todos o exemplo de coragem, de tolerância, de perdão das injúrias e do dever cumprido escrupulosamente.

 

     Falo também em nome de todos os amigos, presentes ou ausentes, que seguiram passo a passo a carreira laboriosa que Allan Kardec sempre percorreu honradamente; daqueles que querem honrar sua memória, lembrando alguns traços de sua vida.

 

     E para começar, quero dizer-vos porque seu envoltório mortal foi para aqui conduzido diretamente, sem pompas e sem outras preces senão as vossas! Precisaria de preces aquele cuja vida toda não foi senão um longo ato de piedade, de amor a Deus e à Humanidade? Bastaria que todos pudessem unir-se a nós nesta ação comum, que afirma a nossa estima e a nossa afeição?

 

     A tolerância absoluta era a regra de Allan Kardec. Seus amigos, seus discípulos pertencem a todas as religiões: israelitas, maometanos, católicos e protestantes de todas as seitas; pertenciam a todas as classes: ricos, pobres, cientistas, livres-pensadores, artistas e operários, etc.... Todos puderam vir aqui, graças a esta medida que não compromete nenhuma consciência e constituirá um bom exemplo.

 

     Mas ao lado desta tolerância que nos reúne, é preciso citar uma intolerância que admiro? Fá-lo-ei porque, aos olhos de todos, ela deve legitimar esse título de mestre, que muitos dentre nós lhe atribuímos. Essa intolerância é um dos caracteres mais marcantes de sua nobre existência. Ele tinha horror à preguiça e à ociosidade; e este grande trabalhador morreu de pé, após um labor imenso, que acabou ultrapassando as forças de seus órgãos, mas não as do espírito e do coração.

 

     Educado na Suíça, naquela escola patriótica em que se respira um ar livre e vivificante, ocupava seus lazeres, desde a idade de quatorze anos, a dar cursos aos seus camaradas que sabiam menos que ele.

 

     Vindo para Paris, e sabendo falar e escrever alemão tão bem quanto o francês, traduziu para a Alemanha os livros da França que mais lhe tocaram o coração. Escolheu Fénelon para o tornar conhecido, e essa escolha denota a natureza benévola e elevada do tradutor. Depois, entregou-se à educação. Sua vocação era instruir. Seus sucessos foram grandes e as obras que publicou, gramática, Aritmética e outras, tornaram popular o seu verdadeiro nome, o de Rivail.

 

     Não contente de utilizar suas faculdades notáveis numa profissão que lhe assegurava um tranquilo bem-estar, quis que aproveitassem os seus conhecimentos aqueles que não podiam pagar e foi um dos primeiros a organizar, nesta fase de sua vida, cursos gratuitos, mantidos à Rua de Sèvres, nº 35, nos quais ensinava Química, Física, Anatomia comparada, Astronomia, etc.

 

     É que havia tocado em todas as ciências e, tendo-as bem aprofundado; sabia transmitir aos outros o que ele conhecia, como talento raro e sempre apreciado.

 

     Para este sábio dedicado, o trabalho parecia o elemento mesmo da vida. Assim, mais do que ninguém, não podia suportar a ideia da morte como a apresentaram então, tendo por fim um eterno sofrimento ou uma felicidade egoísta e eterna, mas sem utilidade, nem para os outros nem para si mesmo.

 

     Era como predestinado, bem o vedes, a espalhar e vulgarizar esta admirável Filosofia que nos faz esperar o trabalho no além-túmulo e o progresso indefinido de nossa individualidade, que se conserva melhorando-se.

 

     Soube tirar dos fatos, considerados como ridículos e vulgares, admiráveis consequências filosóficas e toda uma doutrina de esperança, de trabalho e de solidariedade, parecendo assim em paralelismo com o verso de um poeta que amava:

 

     Mudar o chumbo vil em ouro puro.

 

     Sob o esforço de seu pensamento tudo se transformava e engrandecia, aos raios de seu coração ardente; sob sua pena tudo se precisava e se cristalizava, por assim dizer, em frases de clareza deslumbrante.

 

     Tomava para seus livros esta admirável epígrafe: Fora da caridade não há salvação, cuja aparente intolerância ressalta a tolerância absoluta.

 

     Transforma as velhas fórmulas e, sem negar a feliz influência da fé, da esperança e da caridade, arvorava uma nova bandeira, ante a qual todos os pensadores podem e devem inclinar-se, porque esse estandarte do futuro leva escritas estas três palavras:

 

     Razão, Trabalho e Solidariedade.

 

     É em nome desta razão que ele colocou tão alto, em nome de sua viúva, em nome de seus amigos que eu vos digo a todos que não mais olheis esta fossa aberta. É para mais alto que devemos erguer os olhos, para encontrar aquele que nos acaba de deixar! Para conter esse coração tão dedicado e tão bom, essa inteligência de escol, esse espírito tão fecundo, essa individualidade tão poderosa, bem o vedes vós mesmos, medindo-a com os olhos, esta fossa seria demasiado pequena, e nenhuma seria bastante grande.

 

     Coragem, pois! E saibamos honrar o filósofo e o amigo, praticando suas máximas e trabalhando, cada um na medida de suas forças, para propagar aquelas que nos encantaram e convenceram.

 

                           PRÓXIMA                                                                                                            INÍCIO