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PALAVRAS IMPRÓPRIAS

Autor: (Allan Kardec - 1867). 

 

     Graças a Deus não ignoramos o sentido etimológico do vocábulo milagre. Temo-lo provado em muitos artigos e, notadamente, no da Revista de setembro de 1860. Não é, pois, nem por engano, nem por inadvertência que repelimos a sua aplicação aos fenômenos espíritas, por mais extraordinários que possam parecer à primeira vista, mas em perfeito conhecimento de causa e com intenção.

 

     Na sua acepção usual o vocábulo milagre perdeu sua significação primitiva, como tantos outros, a começar pela palavra filosofia (amor à sabedoria), da qual se servem hoje para exprimir as ideias mais diametralmente opostas, desde o mais puro espiritualismo até o materialismo mais absoluto. Não é duvidoso para ninguém que, no pensamento das massas, milagre implica a ideia de um fato extranatural. Perguntai a todos os que acreditam nos milagres se os olham como efeitos naturais. A Igreja está de tal modo fixado neste ponto que anatematiza os que pretendem explicar os milagres pelas leis da natureza. A Academia mesma assim define este vocábulo: Ato de poder divino, contrário às leis conhecidas da natureza. - Verdadeiro, falso milagre. - Milagre certificado. - Operar milagres. - O dom dos milagres.

 

     Para ser por todos compreendidos, é preciso falar como todo o mundo. Ora, é evidente que se tivéssemos qualificado os fenômenos espíritas de miraculosos, o público ter-se-ia enganado quanto ao seu verdadeiro caráter, a menos que de cada vez se empregasse um circunlóquio e dizer que há milagres que não são milagres, como geralmente se os entendem. Desde que a generalidade a isto liga a ideia de uma derrogação das leis naturais, e que os fenômenos espíritas não passam de aplicação dessas mesmas leis, é bem mais simples e, sobretudo, mais lógico dizer claramente: Não; o Espiritismo não faz milagres. Desta maneira, nem há engano, nem falsa interpretação. Assim como o progresso das ciências físicas destruiu uma porção de preconceitos, e fez entrar na ordem dos fatos naturais um grande número de efeitos outrora considerados como miraculosos, o Espiritismo, pela revelação de novas leis, vem restringir ainda o domínio do maravilhoso; dizemos mais: dá-lhe o último golpe, pela razão por que está por toda a parte em odor de santidade, não tanto quanto a astronomia e a geologia.

 

     Se os que creem nos milagres entendessem esta palavra na sua acepção etimológica (coisa admirável), admirariam o Espiritismo, em vez de lhe lançar o anátema; em vez de pôr Galileu na prisão por ter demonstrado que Josué não podia ter parado o sol, ter-lhe-iam tecido coroas por ter revelado ao mundo coisas de outro modo admiráveis, e que atestam infinitamente melhor a grandeza e o poder de Deus.

 

     Pelos mesmos motivos, repelimos o vocábulo sobrenatural do vocabulário espírita. Milagre ainda teria sua razão de ser em sua etimologia, salvo em determinar a sua acepção; sobrenatural é uma insensatez do ponto de vista do Espiritismo.

 

     A palavra sobre-humano, proposta por Philalethes é igualmente imprópria, em nossa opinião, porque os seres que são agentes primitivos dos fenômenos espíritas, posto que no estado de Espíritos, não pertencem menos à humanidade. A palavra sobre-humano tenderia a sancionar a opinião longamente acreditada, e destruída pelo Espiritismo, que os Espíritos são criaturas à parte, fora da humanidade. Uma outra razão peremptória é que muitos desses fenômenos são o produto direto dos Espíritos encarnados, por consequência, homens, e em todo o caso, requerem quase sempre o concurso de um encarnado. Então, não são mais sobre-humanos do que sobrenaturais.

 

     Uma palavra que também se afastou completamente de sua significação primitiva é demônio. Sabe-se entre os Antigos dizia-se daimon dos Espíritos de uma certa ordem, intermediários entre os homens e aqueles que eram chamados deuses. Esta designação não implicava, na origem, nenhuma qualidade má; ao contrário, era tomada em bom sentido. O demônio de Sócrates certamente não era um mau Espírito; ao passo que, segundo a opinião moderna, saída da teologia católica, os demônios são anjos decaídos, seres à parte essencialmente e perpetuamente votados ao mal.

     Para ser consequente com a opinião de Philalethes, seria preciso que, em respeito à etimologia, o Espiritismo também conservasse a qualificação de demônios. Chamando o Espiritismo seus fenômenos de milagres e os Espíritos de demônios, seus adversários teriam feito um belo jogo! Teria sido repelido por três quartos dos que hoje o aceitam, porque nisso teriam visto um retorno a crenças que já não são de nosso tempo. Vestir o Espiritismo com roupas velhas teria sido uma inabilidade; teria sido dar um golpe funesto na doutrina que teria tido o trabalho de dissipar as prevenções que denominações impróprias teriam alimentado.

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