OS BURROS E OS HOMENS

Obs.: Este título foi criado pelo compilador. O artigo abaixo (que não tem título do autor) foi feito pelo Espírito Alexandre Herculano na segunda década do século 20; foi recebido pelo médium Fernando de Lacerda e consta no volume 4 da obra "Do País da Luz".  www.febeditora.com.br/

     Inesperadamente te veio à mão essa bugiaria literária - "O Pároco da Aldeia". Foi um dos meus pecados da mocidade e nem dele eu conservava já memória. Mas, como a todos os pecados de moço, o vejo hoje envolvido no tenuíssimo véu da saudade. Quando o tempo vem enchendo a nossa vida de sisudez e de circunspecção, os nossos pecadilhos próximos tomam aspectos de coisas temerosas; mas, ao par que nos alongamos deles, a recordação, esbatendo-os na luz suave da simpatia, leva-nos a olhá-los com ternura, com carinho, como se neles estivesse a melhor parte da nossa vida que não torna mais.

     Nenhum dos atos graves da minha ação de taciturno me evoca o saudoso desar das coisas em que o coração interveio. Eram atos meditados, filhos do raciocínio, frios como cinzas apagadas.

     Ao contrário, aqueles que a solenidade circunspecta e ponderada de velho escritor, cheio de anos, de desgostos, de rabuges e de sabedoria, não aprovaria, têm agora para mim o poético aspecto das desbotadas flores, dadas pela namorada dos quinze anos e conservadas religiosamente, amorosamente, como relíquias, num cofrezinho fechado.

     Assim esse livrinho, escrito despreocupadamente, contém ideias que constituem a base da toda a minha atual filosofia.

     Com prazer o revi; com prazer o saboreei, agora que toda a roupagem com que vesti a ideia predominante nessa pobre frivolidade literária, não representa mais que os mesquinhos trajes com que enroupei a Bernardina.

     Expurgada a obrinha das coisas banais de um romance desenfastiado, orgulho-me de tudo quanto nele escrevi. E, como fui profeta, quando previ que os filósofos que trabalhavam para a felicidade do povo, para cuja felicidade, segundo eles, não se precisava mais que abandonar as crenças do Cristianismo e amaldiçoar as esperanças de Deus - o conforto único de sua vida de miséria, de trabalho e amargura, lhe haviam de dar essa felicidade!

     Como eu via, de longe, a idílica quadra que a civilização atravessa, quando, vendo o caminho largo que tantas filosofias desbravavam, confessava saber que o consumir-se pólvora em esbombardear cidades e em alastrar de cadáveres um campo de batalha, era coisa muito mais filosófica e sisuda do que desbaratá-la nas festividades supersticiosas do povo!

     Não havia ainda a dinamite e todos esses beneméritos explosivos acabados em ite, que a Ciência trouxe em socorro da filosofia positiva, libertadora da escravidão piegas e sentimental em que jaziam homens ignorantes, alheios às grandes lutas modernas, esquecidos na sua doce e tranquila paz de desambiciosos e de crentes!

     E ao ver daqui a catadupa de felicidades modernas que aquelas doutas filosofias jorram, como cataratas, sobre os povos emancipados, tremo de pejo por ter preparado a blasfêmia de dar, então, graças a Deus, por não ter a honra pertencer à classe dos que lidavam, contentes de si, por se bambolearem no vértice da animalidade pura, e que se chamavam homens da vida positiva. É esta heresia máxima de que haverei tempo bastante para penitenciar-me! Basta olhar para esses lares felizes sem religião, que se pavoneiam nas terras civilizadas de Portugal; para a paz e abastança com que os das tais  filosofias afortunaram as aldeias portuguesas, outrora perdidas no escuro da superstição.

   Só quem for cego de nascença ou de contumácia deixa de ver a alegria que, ao presente, aflora em todos os rostos portugueses; a serenidade espiritual em que vivem todos aqueles a quem ensinaram o desprezo de Deus e a não existência da alma. É de ver o regozijo em que rejubilam todos aqueles a quem fecharam as igrejas, destruíram as idolatrias, arrancaram a fé, aniquilaram essas esperanças vazias em divindades que não existem!

     Reina a felicidade completa! As mães não irão aos templos, cheias de dor e lavadas em lágrimas, pedir ao Deus, que vivia amado nos seus corações, a saúde dos filhos a definharem de doença ou miséria; as filhas não irão mais rojar-se pelo lajedo frio das igrejas, em risco de resfriamentos e pneumonias, pedir, com os lindos olhos arrasados de lágrimas, a vida dos seus trêmulos pais, que se preparam para partir na longa viagem até ao Céu.

     Já não há Deus, já não há Céu, não é necessário pedir. Os confortos para as suas aflições, bebem-nos nas lúcidas teorias positivas de negação e de ateísmo.

     A resignação e o ânimo para se suportar reveses, brotam hoje, aos golfões, de sábias leis vinculadoras dos direitos cívicos dos homens, da emancipação eleitoral da mulher. A mulher é política, a mulher vota, a mulher é pedreira livre (não sei se sabem o que isso vem a ser...) o homem é livre, insulta Deus, desdenha de fés, de crenças, de preconceitos? Está a pátria salva e a espécie humana no acume da sua perfeição.

     Os burros têm passado todas as suas longas gerações sem Deus e sem esperanças em vidas futuras e ainda se não queixaram de infelicidades. Ora, se se não queixam, é porque são felizes; se são felizes assim, o esforço útil e benemérito a empregar é o que aproximar, tanto quanto possível, os homens aos burros. É lógico, é filosófico. E, senão, diga-me algum teimoso, que se não dê por convencido com esta mirífica conclusão da lógica e da hermenêutica: -  É ou não verdade que, desde os tempos imemoriais, o homem tem crido em divindades, em forças sobrenaturais, quer sejam atributos de fetiches, de amuletos, de figuras idólatras, de Deuses, ou do Deus, supremo Pai, supremo Criador? É.

     É ou não verdade que o homem, sempre, ou quase sempre, se tem crido na posse de uma alma que o superioriza a todos os viventes, dignificando-o, igualando-o a Deus na imortalidade e na posse do direito de fazer o bem e fazer o mal, dando-lhe a ventura de lhe eternizar os afetos, de lhe conservar as pessoas adoradas e permitir-lhe o consciente aperfeiçoamento do seu ser? É.

     É ou não verdade que o homem esteve sempre no gozo dos sentimentos de gosto, de arte, de percepção e de resolução, que o elevam às cumiadas do belo, do bom, do grandioso e do útil, quer seja nas manifestações das grandes epopeias trágicas da humanidade, quer nas produções divinas da música, da pintura e mais artes liberais, quer ainda nas lucubrações das ciências, nas significações do ideal? É.

     E o que tem feito o homem sempre? Chorar-se, protestar, maldizer-se.

     Nunca é feliz; nada o contenta. Enrodilhado sempre pela ambição, esmagado pelas dores que ele próprio inventa e avoluma, crucificado pela vaidade e por toda essa longa e infinita série de vícios e de defeitos que a civilização descobre e aperfeiçoa dia a dia, crê-se mártir sem remissão.

     Vejamos agora o reverso. O burro acreditou ou acredita em Deus? Não. Crê que tenha alma? Não. Sabe alguma coisa dessas bugigangas de artes, de ciências, de ideais. Não. Tem poetas, pintores, músicos, literatos e toda essa lenga-lenga de causticadores da humanidade? Não. E já alguém ouviu os burros queixarem-se de infelicidade, maldizerem-se, invectivarem o destino que os fez burros? Não. Logo, o supremo ideal de uma filosofia moderna e benemerente é aproximar, é igualar os homens aos burros, sem ofensa a estes. E, daí, há já uma coisa em que muitas vezes se parecem: - é em morderem e fazerem afagos com os pés.

     Creio que se houver quem, com razão, reclame contra o escopo a atingir e quase atingido, são os burros. Eles mordem e fazem outros gestos pouco parlamentares, mas não tenho em memória nenhum asno que levasse os arrancos da sua civilização a matar os seus semelhantes, a bombardeá-los, a apunhalá-los, a persegui-los, a caluniá-los, nem a exercer mais nenhuma das outras muitas virtudes de que o homem insolentemente se orgulha e de que  os burros se horrorizariam ou enojariam, se a filosofia deles as tivesse introduzido pomposamente nos seus arraiais.

     Assim, eu me peso de não ter empregado aí o meu tempo e o meu cuidado a cultivar as teorias sociais e humanas que tão bom resultado estão dando nas cidades e vilarejos do nosso paradisíaco país. Arrependo-me de ter pensado e ter dito que havia alegrias e fulgores nas festas a Deus; esperanças e consolos nas preces dos aflitos; de ter acreditado que a morte de um crente é um passamento mais  suave e tranquilo que o da morte de um ateu; de ter pensado que aqueles que choram, mas rezam, são menos desgraçados que os que só choram e maldizem!

     Para que todos esses pesares me escureçam o coração, basta ver como tudo corre bem em Portugal. Como a aurora das filosofias materialistas inundou de luz todas as almas que se mergulham no escuro do espiritualismo, como morcegos! Mas, para que o pesar não seja completo, devo confessar que sentiria o meu coração na tortura das torturas, se não me acalentasse a esperança de que, passado o temporal com que Deus vem provando a covardia de muitos e a loucura de alguns, a fé, a luz cariciosa e inefável do Cristianismo, volverá a raiar e a envolver as almas sangradas e doridas dos portugueses, então despertas de um tétrico pesadelo, como o Sol dourado e purificador vem beijar os destroços sangrentos de uma batalha, ferida nos desvãos escuros e traiçoeiros da noite!

     Continuo a pertencer à velha escola; e, conquanto reconheça no materialismo dos burros virtudes que honrariam à maioria dos homens, prefiro conservar-me afastado filosoficamente desse materialismo mundano, como o meu ser espiritual se conserva afastado dos átomos da matéria em que aí se enclausurou e que a podridão providencial e transformadora devolver à Natureza física, eterna, evolucionadora, com a minha morte terrena.

     E tudo isto veio a propósito do pobre livrinho por ti desencantado do pó de uma estante abarrotada!... Vejam o que é recordar...

Foto iap

Nota do compilador: A propósito da menção pelo autor espiritual de sua obra "O Padre da Aldeia", transcrevo pequeno trecho desse livro:

"Vede aquela casinha, tão humilde e só, no meio de um descampado. Lá, sobre camilha dura e rota, delira em acesso febril um filho, único amparo de mãe desditosa, que vela, chorando ao pé dele. Na sua solidão e miséria, nenhuns socorros humanos pode esperar a pobre velha, cujas mãos trêmulas em vão tentam aconchegar as roupas que o febricitante arroja, murmurando aflito com o ardor que o devora. Uma lâmpada de ferro, que alumia frouxa o aposento, arde no canto oposto, diante de uma grosseira e afumada imagem da Virgem. A triste mãe volve para lá os olhos, embaciados da idade e das lágrimas, e sente que não se acha inteiramente abandonada. Ali está outra mãe que também derramou pranto por um filho; pranto mil e mil vezes mais amargoso que o seu. Ela há de compreender-lhe a aflição e valer-lhe, porque é boa e poderosa ante Deus.

Ei-la, a pobre velha, que trôpega se arrasta e ajoelha aos pés da imagem e cruza as mãos enrugadas e ora; ora com fé viva. Na procela de terrores que a cercam começa a bruxulear uma luz de esperança: espera porque crê na possibilidade da intercessão e dos milagres; e anima-se, e a tempestade da sua alma asserena-se, e a dor mitiga-se, porque, no meio das lágrimas e das rezas, ela pensa lá consigo que aquela imagem trouxe já muitas consolações a seus pais, a ela mesma e a toda a família, e que a Virgem Santíssima há de acudir-lhe ao seu filho, que, desde pequenino, gostava de ir apanhar as flores campestres para enfeitar a S, e que tantas vezes, à noite, antes de se deitar, ia pôr-se de joelhos ali onde ela estava a rezar uma salve-rainha. Quantas vezes, depois destas orações ardentes, volve Deus olhos compassivos para a morada da miséria e da amargura, e obra, não um milagre inútil, mas o benefício que faria qualquer médico, se na habitação solitária houvesse a possibilidade de se buscarem os socorros da ciência humana!"