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O MÉDICO MATERIALISTA 

     Um médico que designaremos sob o nome de doutor Claudius, conhecido de alguns dos nossos colegas, e cuja vida tinha sido uma profissão de fé materialista, morreu há algum tempo de uma afecção orgânica, que ele sabia ser incurável. Chamado, sem dúvida, pelo pensamento dos que o haviam conhecido e que desejavam conhecer sua posição, manifestou-se espontaneamente por intermédio do Sr. Morin, um dos médiuns da Sociedade, em estado de sonambulismo espontâneo. Já várias vezes esse fenômeno se produziu por esse médium e por outros adormecidos no sono espiritual.

     O Espírito que assim se manifesta apodera-se da pessoa do médium, serve-se de seus órgãos como se ainda estivesse vivo. Então não mais é uma fria comunicação escrita. É a expressão, a pantomina, a inflexão de voz do indivíduo que se tem diante dos olhos.

     Foi nestas condições que se manifestou o doutor Claudius, sem ter sido evocado. Sua comunicação, que publicamos textualmente a seguir, é instrutiva a vários títulos, principalmente quando descreve os sentimentos que o agitam; a dúvida ainda constitui o seu tormento; a incerteza de sua situação o mergulha numa terrível perplexidade, e aí está a sua punição. É um exemplo a mais que vem confirmar o que se viu muitas vezes em casos semelhantes.

     Após uma dissertação sobre outro assunto, o médium absorvido se recolhe alguns instantes, depois, como se despertasse penosamente, assim se exprime, falando a si mesmo:

     Ah! ainda um sistema!... Que há de verdadeiro e de falso na existência humana, na criação, na criatura, no criador?... A coisa é?... A matéria é mesmo verdadeira?... A ciência é uma verdade?... O saber, uma aquisição?... A alma... a alma existe?

     O criador, a divindade não é um mito?... Mas... que digo eu?... porque essas blasfêmias multiplicadas?... Porque, em face da matéria, não posso crer, ó meu Deus, não posso ver, sentir, compreender?...

     Matéria!... matéria!... mas, sim, tudo é matéria... Tudo é matéria!!!... entretanto, a invocação a Deus veio-me à boca!... Porque, então, disse eu: ó meu Deus?... Porque esta palavra, desde que tudo é matéria?... Sou eu?... Não é um eco do meu pensamento, que raciocina e escuta?... Não são os primeiros repiques do sino que eu tocava?

     Matéria!... Sim, a matéria existe, eu o sinto!... a matéria existe: eu a toquei!... mas!... nem tudo é matéria e, contudo... contudo, tudo foi auscultado, palpado, tocado, analisado, dissecado fibra a fibra, e nada!... Nada senão a carne, a matéria sempre que, desde o instante em que o grande movimento parou, parou também!... O movimento para, o ar não chega mais... Mas!... se tudo é matéria, porque ela não mais se põe em movimento, desde que tudo o que existia quando ela se agitava, existe ainda?... E contudo... ele não existe mais!...

     Mas se eu sou!... nem tudo acabou com o corpo!... Na verdade... estou mesmo morto?... entretanto, esse roedor que alimentei, que cuidei com minhas mãos, não me perdoou!... É verdade; estou morto!... Mas esta doença que vi nascer... crescer... tinha uma alma?

     Ah! a dúvida! Sempre a dúvida!... em resposta a todas as minhas secretas aspirações!... Mas, se eu sou, ó meu Deus, se eu sou... ah! fazei que eu me reconheça!... fazei-me vos pressentir!... porque se eu sou, que longa sucessão de blasfêmias!... que longa negação de vossa sabedoria, de vossa bondade, de vossa justiça!... Que imensa responsabilidade de orgulho assumi sobre minha cabeça, ó meu Deus!... Mas se ainda tenho um eu, eu que nada queria admitir fora da possibilidade de tocar... duvidei de vossa sabedoria, ó meu Deus! é justo que eu duvide!... Sim, duvidei; a dúvida me persegue e me castiga.

     Oh! mil mortes antes que a dúvida em que vivo!... Vejo, encontro antigos amigos... e contudo, todos morreram antes!... Méry, meu pobre louco!... mas não sou antes eu?... o epíteto se adapta à sua personalidade? - Vejamos, então. O que é a loucura?...

     A loucura!... a loucura!... decididamente, a loucura é universal!!! todos os homens são loucos num grau maior ou menor... mas sua loucura, dele, não era sabedoria ao lado de minha própria loucura?... Para ele, os sonhos, as imagens, as aspirações  ao além de... mas, é justiça!... Conhecia eu esse desconhecido, que a mim se apresenta inopinadamente?... Não, não, o nada não existe, porque se existisse, esta encarnação de negação, de crimes, de infâmias, não me torturaria assim!... Vejo, mas vejo demasiado tarde, todo o mal que fiz!... Vendo-o hoje, e reparando-o pouco a pouco, talvez um dia eu seja digno de ver e fazer o bem!...

     Sistemas!... sistemas orgulhosos, produtos de cérebros humanos, eis aonde nos conduzis!... Num, é a divindade; noutro a divindade material e sensual; num terceiro, o nada, nada!... Nada, divindade material, divindade espiritual, são palavras?... Ó eu peço para ver, meu Deus!... e se eu existo, se vós existis, concedei-me o favor que vos peço; aceitai minha prece, porque vos peço, ó meu Deus, que me façais ver se eu existo, se eu sou!... (Estas últimas palavras foram ditas com um tom dilacerante). (Esta comunicação do Espírito denominado Claudius, consta na Revista Espírita de agosto de 1867).

Obs.: Se o Sr. Claudius perseverou até o fim na sua incredulidade, não foram os meios de se esclarecer que lhe faltaram. Como médico, tinha, necessariamente, o espírito cultivado, a inteligência desenvolvida, um saber acima do vulgo e, contudo, isto não lhe bastou. Em suas minuciosas investigações da natureza morta e da natureza viva, não entreviu Deus, não entreviu a alma! Vendo os efeitos, não soube remontar à causa! ou melhor dito, tinha imaginado uma causa à sua maneira, e seu orgulho de sábio o impedia de o confessar a si próprio, de confessar sobretudo à face do mundo que podia ser enganado. Circunstância digna de nota, morreu de um mal orgânico que sabia, por sua própria ciência, ser incurável; esse mal, que ele tratava, era uma advertência permanente; a dor que lhe causava era uma voz que lhe gritava sem cessar que pensasse no futuro. Entretanto nada pôde triunfar de sua obstinação; fechou os olhos até o último momento. Será que esse homem jamais teria podido tornar-se Espírita? Certamente não. Nem fatos, nem raciocínios teriam podido vencer uma opinião estabelecida de propósito, e da qual estava decidido a não se desviar. Era desses homens que não se querem render à evidência, porque neles a incredulidade é inata, como a crença em outros. O sentido pelo qual um dia poderão assimilar os princípios espirituais ainda não brotou; são para a espiritualidade o que os cegos de nascença para a luz: não a compreendem.

     Então a inteligência não basta para conduzir pelo caminho da verdade; ela é como o cavalo que nos carrega, e que segue a rota na qual o lançaram. Se esta rota conduz a um pântano, ele aí precipita o cavaleiro; mas, ao mesmo tempo, dá-lhe os meios de se erguer.

     Tendo o Sr. Claudius morrido voluntariamente como cego espiritual, não é de admirar que não tenha visto a luz imediatamente; que não se reconheça num mundo que não quis estudar; que, morto com a ideia do nada, duvide de sua própria existência, incerteza pungente que constitui o seu tormento. Caiu no precipício para onde impeliu sua montaria-inteligência. Mas pode erguer-se desta queda e parece já entrever um clarão que, se o seguir, o conduzirá ao porto. É em seus louváveis esforços que deve ser sustentado pela prece. Quando uma vez tiver gozado dos benefícios da luz espiritual, terá horror às trevas do materialismo; e se um dia voltar à terra, será com intuições e aspirações muito diversas das que tinha nesta última existência. (Allan Kardec).                                 INÍCIO         

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