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ENTRADA TRIUNFAL NA IMORTALIDADE

(Comunicação do Espírito Eça de Queirós - (27/11/1906) - Obra: Do País da Luz - Médium: Fernando de Lacerda). 

 Nota do compilador: Nesta extraordinária mensagem de Eça podemos constatar sua peculiar ironia. Com sinceridade, conta-nos que quando encarnado chegou a assistir a uma sessão espírita, todavia não lhe deu maior importância; depois, mostra-nos a situação na qual se encontrou quando chegou ao Plano Espiritual. 

     Estranha coisa é esta!

     Quando na Terra, tive ocasião de assistir a experiências que interessaram muito o meu cuidado de observador. Em Paris, um dia, efetuou-se uma sessão em minha casa, a que assistiram, entre outros, o Navarro e o Faria; e ali obtivemos notícias, que nos pareceram autênticas, de pessoas idas.

     O assunto era sério demais para que lhe prestasse o meu amor blasé, e deixei-o. Camadas sucessivas de tempo cobriram essa impressão, e era necessário depois esforços grandes da minha vontade, para acreditar, eu próprio, que não tivéssemos sido vítimas de mistificação.

     Os tempos passam, novos tempos vêm, e eu passei daí para aqui.

     Nos últimos tempos do meu macerado corpo na Terra, eu procurava levantar as camadas endurecidas que escondiam aquelas curiosas experiências a que havia assistido, e queria ver se o meu espírito doente, no corpo doente, podia, numa acuidade suprema, prever a verdade do singular mistério da morte. Mas ele recuou mais uma vez, ante a seriedade de uma coisa para que se confessara fraco.

     E eu, que não queria extinguir-me, armei dentro em meu peito um luminoso altar ao Deus de minha mãe; afervorei-me a ele, e refleti: - Deve ser verdade a existência de Deus e da vida eterna.

     Uma ideia não atravessaria os tempos, sempre firme e sempre grande, vencendo todos os obstáculos que a maldade dos homens lhe tem anteposto, se não fosse a eterna e indestrutível verdade.

     E depois minha mãe crê, e quero crer também.

     Tenho espalhado tanto riso, e concentrado tanta dor, que bem posso agora pôr a minha alma a rir, no momento final em que o meu alquebrado corpo vai consumar a dor derradeira.

     Assim passei.    

     O meu eu, mineiro empobrecido e alquebrado da mina da ironia, entrou na vida sonhada e crida, à força de vontade, e sorridente e feliz, por ter despido o porco escafandro em que atravessara esse imundo charco, que se chama - o mundo.

     Nunca tiveste a sorte grande, não?

     Não; mas os que a hajam tido que te expliquem a sensação de assombro, de alegria doida, que os toma ao terem a almejada notícia. Entretanto eles não jogaram nunca senão para terem essa sorte.

     Espantam-se duma coisa que foi sempre a sua mais fagueira e aferrada esperança.

     Ora foi o que me sucedeu.

     Nos últimos momentos que vivi nesse vale de lágrimas... de crocodilo, enclavinhei as minhas unhas de náufrago na tábua da derradeira esperança no ressurgimento, como um jogador enragé na esperança da sorte máxima. Pois fui tomado de igual assombro ao ver que essa sorte me tinha saído, e que este corpo, só de ossos feito, jazia estatelado no fofo colchão onde finalizou a sua marcha, e eu - o meu apetecido eu espiritual - me despegava dele como de uma véstia inútil e sebosa, saindo daquela desengonçada prisão, como um pintassilgo de uma gaiola velha.

     Não sei bem se o pintassilgo, ao sentir-se livre, canta imediatamente hinos à liberdade querida; eu é que, confesso, não me senti logo com muita vocação para a cantoria.

     É que nesse ramo da bell’arte di canto fui sempre um desgraçado.

     Trauteava às vezes, baixinho, a medo de me surpreender eu próprio no estranho caso, um fadinho brejeiro ou uma modinha de Vila do Conde; e qualquer dessas coisas não tinha na grandeza a solenidade do ato, nem o entrain de uma marseillaise celestial; por isso senti grande embaraço na conjuntura.

     A minha consciência - o tal guarda-livros a que anteontem te aludi - deu-me um repelão furioso e tirou-me da dificuldade; e cruzando os braços diante de mim, perguntou-me em fera catadura:

     - Vamos, blasé; vamos, vencido da vida (oh! oh!); vamos, ironista; vamos, idiota, dize lá o que fizeste.

     Por onde andaste com esse fenomenal riso de parvo?    

     Que bagagem dás ao manifesto, ao passar a aduana celestial?...

     Senti-me aterrado.

     Nunca nas minhas mais fantásticas concepções imaginei que houvesse aqui uma sucursal da aduana portuguesa.

     Era a mesma delicadeza e a mesma curiosidade!

     Estaquei de assombro, e refleti que devia ser bem poderosa a minha pátria lusa, para estender as suas raias até além da imortalidade. Procurei equilibrar-me, e reflexionei: - Vamos, tendo de haver aqui guarda fiscal e não sendo francesa, prefiro então que seja minha patrícia. E quis parlamentar.

     Mostrei a minha rica bagagem.

     - Olhe, aqui tem. Este é o crime da Estrada de Cintra - o meu primeiro crime...

     Abriu muito os olhos e respondeu:

     - Isto aqui não é Boa-Hora. Diga o que traz. Eu não tenho nada com os seus crimes...

     - ...O crime do Padre Amaro...

     Já lhe disse que isso aqui não é Boa-Hora... que tenho eu agora com o crime do Padre Amaro?... Padres criminosos têm aqui passado muitos...

     - ...O Primo Basílio...

     - Não preciso conhecer a família... Adiante.

     - ...O Mandarim...

     - Mau! Você está a brincar comigo? Que tenho eu com os mandarins! Nós não estamos na China, no celeste império, estamos no império celeste.

     - Achei graça ao trocadilho garrídico do Cérbero aduaneiro, e continuei: - Maias, Fradique Mendes, Relíquia, Cidades e as Serras, cartas de várias partes do globo terráqueo, artigos de revistas, jornais, contos...

     - Homem, pare lá! Mas que tenho eu com isso?...

     - Fez-se luz para mim. Esquecia-me de que a guarda fiscal portuguesa não sabia ler!!!

     - Pois, senhora guarda fiscal, não trago mais nada útil.

     - Pois, senhor viajante, será mais verdadeiro se disser que não traz nada útil.

     - Bagagem avariada, bagagem avariada!

     - Pode passar sem pagar despacho, mas não lhe auguro nada de bom aí mais para diante. Vai suceder-lhe como à cigarra de La Fontaine: - cantou, mas vai dançar agora...

     Aterrorizei-me. Que me iria suceder?

     Quis comover a minha patrícia. Falei-lhe no português mais comovente que sabia, e ela desatou a rir. Compreendi então que nunca foi o meu forte fazer chorar os outros... senão de raiva ou de inveja; e lamentei não ter estudado no meu dicionário os palavrões que puxam a lágrima e sensibilizam os corações aos soldados e às matronas. O que sabia era de meu próprio uso, espécie de camisa de noite, qualquer coisa de pessoal como uma escova de dentes, ou umas pantufas da manhã; e disso não podia oferecer para a sensibilidade alheia.

     Lembrei-me de lhe cantar a palinódia1 de Juvenal, de que ridendo castigat mores; mas o Cérbero2 estava como o meu médium: - não sabia latim. 

     Desisti. Passei, cabisbaixo.

     À saída encontrei caras conhecidas que estavam à espera de ver como eu me saía do apuro, e tive o desprazer de constatar que nem aqui deixava de encontrar quem estivesse à espreita da dor e do sofrimento alheio, para o libar como precioso néctar.

     Fechei-me, couracei-me e ri-me.

     Desconcertei-os.

     Ficaram com cara de palmo e meio. Segui, e lá fui com a minha bagagem à desinfeção.3

     Entreguei-a com a ridente esperança de que os empregados do posto fossem também portugueses; e que por isso gostassem de ler, ler muito, mas... de graça, e que por algumas horas de amena despreocupação de espírito, fossem mais benévolos e tolerantes do que a minha consciência...

     Enganei-me. Fiquei desgraçado.

     Era uma peste de tal ordem a minha obra, que a queimaram toda. Auto de fé puro e simples.

     E aqui tens, meu amigo, a minha entrada triunfal na imortalidade.

(Espírito Eça de Queirós - (27/11/1906) - Obra: Do País da Luz - Médium: Fernando de Lacerda). 

(1) Palinódia: Poema no qual o autor se retrata daquilo que disse em outro. (2)  Cérbero: cão mitológico que guarda a porta do inferno;  guarda ou porteiro intratável. (3) Desinfeção: desinfecção. Ridendo castigat mores: "Pelo riso corrigem-se os costumes" - nota do compilador.

 INÍCIO  

A  MATÉRIA  NÃO  É  SENÃO  UM  ENVOLTÓRIO  DO  ESPÍRITO,  COMO  O  VESTUÁRIO  É  O  ENVOLTÓRIO  DO  CORPO.  UNINDO-SE  AO  CORPO,  O  ESPÍRITO  CONSERVA  OS  ATRIBUTOS  DE  SUA  NATUREZA  ESPIRITUAL