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EÇA FALA AO SEU MÉDIUM                              

(Comunicação do Espírito Eça de Queirós - Médium: Fernando de Lacerda - Obra: Do País da Luz - volume 1)  

30 de janeiro de 1907

    

Meu caro Fernando.

     Com pouco te preocupas.

     Bastou que alguém te pusesse em dúvida a existência real da minha individualidade, para que te sentisses fraquejar.    

     Que te deve importar a opinião dos outros, quando ela é destituída de base séria que lhe mantenha o peso?

     Que te importa o que os outros pensam?

     Cada um pensa como quer, como sabe, como lhe deixam ou como lhe convém.

     Nunca tive a pretensão de estabelecer regras ao pensamento humano, que é a coisa mais livre do Universo.

     Esse quid misterioso, que os lunáticos já quiseram classificar de segregação cerebral, é a maior força, a energia mais veloz, a luz mais intensa que Deus pôs no Universo.

     Elabora-se instantaneamente no cérebro, instantaneamente pode percorrer o espaço infinito, sem barreiras, sem entraves, sem liames; estabelecendo ligações, afinidades, correspondências, solidariedade; apreciando, criticando, amando, detestando; escapando-se aos esbirros, aos inquisidores de  todas as épocas, de todas as religiões, de todas as ciências, de todas as seitas, de todas as maldades, de todas as ignorâncias, de todas as críticas, como a luz do sol escapa ao seu enclausuramento em um receptáculo opaco, hermeticamente fechado.    

     Se nem Deus lhe põe obstáculos, como lhos havíamos de criar nós?

     Pensam que não sou Eça?

     Eça ou não, sou quem como tal tem escrito o que como de Eça possuis.

     Se não sou Eça, quem sou?

     Perdes facilmente a serenidade, amigo!

     Pois queres discussão e não queres ser discutido?

     Pois queres vir lançar um repto à velha sociedade, à velha ciência, ao ateísmo, à ignorância, à pretensão, e não queres que te discutam?

     Pois queres entrar de chofre no mundo com cartas, tuas ou de outrem, de uma singular contextura, revelando bem estranhas e singulares formas de pensar e de dizer, e não queres que esses que vais despertar da sua sonolência e atacar no seu conservantismo ou na sua filáucia te respondam com dúvidas, com repelões, com vaias ou com insultos?

     Conheces algum inovador, pacífico instrumento da revolução científica, ou revolucionário pioneiro do progresso humano, que não tenha passado, ante os seus coevos, por louco, visionário mistificador ou charlatão?

     Que encontras em ti que te fizesse esperar sair da regra geral?

     És um ingênuo!

     Se assim fosse, ou se assim for, a tua, a nossa obra, redundará em pura perda, em extraordinário fracasso.

     O sucesso será a discussão; será o ataque, a troça, o insulto, a perseguição.

     O sucesso será agitar a opinião em volta do assunto; será levar o espanto ante aqueles que, de boa ou má-fé, negarem a hipótese, para os compelir à busca de uma explicação para o fato insólito.    

     Todo trabalho que tente transformar os velhos preconceitos, modificar as velhas fórmulas, reformar obsoletas doutrinas, radicar progressivas ideias, destruir anacrônicas hierarquias, renovar e impulsionar as estáticas ciências consagradas, tem sido repelido e monteado.

     Se não fosse a perseguição, que seria da religião cristã? Se não fosse a intolerância, que seria a ciência moderna? Se não fosse o insulto, a zombaria, que seria atualmente o Espiritismo?

     Conheces alguma ideia notável, algum grande fato progressivo da humanidade, que não tenha tido esse batismo?

     Sabes de algum homem que tenha excedido a craveira normal da vulgaridade humana, que não tenha sido apodado de visionário, de louco, de sonhador?

     E quem tem feito evolucionar o mundo, arrancando-o ao conservantismo pé de boi, sisudo, ajuizado, metódico e egoísta, senão essas belas criaturas incompreendidas, apodadas, escarnecidas; providenciais guardas avançadas do progresso, vanguarda luminosa do sentimento, do engenho, da arte e da perfeição?

     Ora tu, que não tens pretensões, que te não supões medroso de coisa alguma, que és o primeiro, numa grande manifestação de inusitada honestidade, a enjeitares a paternidade do que escreves, bom ou mau, acertado ou incongruente, porque te admiras e molestas de que os sábios ou os ignorantes, os letrados ou os ilustrados, os consagrados ou os anônimos, do liliputiano meio em que te encontras, te critiquem e te alcunhem?

     Não sejas criança, que tens brancas na cara!

     Ninguém te pode acusar de plagiário, nem de defraudar, porque o que escreves é original.

     Dizem que é teu?

     Pouco apreço manifestarás por nós e pelos escritos, se te ofenderes por isso.

     Ou o que apresentas é digno de nós ou não.

     Se é, deves envaidecer-te de te emparceirarem com alguns dos melhores nomes de algumas gerações literárias; se não é, é justo que te zurzem por vires à feira com mercadoria de baixa qualidade, querendo etiquetá-la com rótulos das marcas mais acreditadas (exceção à minha, como é do estilo dizer-se).

     Estás convencido de que é nosso ou de quem se nos equivalha?

     Deixa que os outros pensem como quiserem.

     Terás que fazer de D. Quixote se te propões a desfazer os agravos e as sem-razões que a teu e a nosso respeito terás que sofrer.

     Qual foi de nós que aí, na Terra, passou incólume das mordidelas dos zoilos e dos zangãos?

     Nenhum, creio eu.

     Se tens a epiderme assim sensível, não vás mais além.

     Desiste.

     Dos fracos e dos tímidos não reza a história.

     Chama-te alguém doido?

     Quem te impede de lho chamares também?

     Ri-se alguém de ti?

     Porque te não ris deles?

     O direito é igual; a autoridade é que é diversa; e creio que em tua consciência não haverá dúvidas sobre quem possua essa autoridade, nascida do estudo, nascida dos fatos, nascida da própria ciência, quer no campo especulativo, quer no campo experimental.

     Nem todos trabalham para o dia em que trabalham.

     Se és da massa anódina e insossa dos acomodatícios ou dos medrosos, desiste. Desiste, ou não dês ouvidos.

     Se te não sentes com envergadura para a luta, para, que ainda estás a tempo.

     Agora se te sentes bastante provido de paciência, de fé, de constância, de coragem e de vontade, avança, sem olhares para a retaguarda nem para os lados, sem atenderes, sem ouvires, sem curares; porque, se ao chegares ao fim tiveres cépticos, maldizentes e trocistas no teu rasto, também terás dedicações e ternuras, como não haverá maiores, mais sinceras, mais desinteressadas nem mais belas aí e aqui.

     E de mais, meu amigo, rira bien...

     Medita no que deixo dito.

     Recorda-te de que a paciência é a mais poderosa força para conseguir, e a tolerância a maior autoridade para conservar.

     Como ainda és sensível à vaidade!

     Como, apesar do grau do espírito que te anima a carcaça miseranda, ainda pertences á terra, à terra da banalidade, da convenção, da vaidade, do melindre, do formalismo!

     A terra há de ser sempre a terra!

     Junte-se à terra mais limpa o líquido mais precioso e só fará lama que suja e apodrece!

Nota do compilador: José Maria Eça de Queirós (1845-1900). Introdutor em Portugal da técnica do romance realista, foi um torturado da forma e provavelmente ninguém o excedeu na plasticidade da linguagem. É considerado um dos primeiros estilistas do idioma português. Retratou, com ironia cáustica, a sociedade lisboeta do seu tempo, o que lhe acarretou vivos ataques. Como Espírito, continuou essas críticas irônicas que são verdadeiras obras-primas de nossa língua.

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