Dante e Beatriz - A Divina Comédia - Dante Alighieri - Ilustração de Gustave Doré

(Comunicação do Espírito Eça de Queirós - Obra: Do País da Luz - volume 3 - Médium: Fernando de Lacerda). Esses livros foram editados no início do século 20. 

Eça de Queirós

                            

  

     A maioria das pessoas que aí se esfalfam a representar o que não são, para conseguirem aplausos da turba, deitavam fogo à imagem chagosa do Deus da igualdade e do amor.

     Deitar fogo à imagem, expressão apagada, e talvez falha de verdade.

    Quando Ele andou por esse mundo a ensinar o amor aos humildes e o perdão aos maus, a acarinhar os pobres e a sorrir às crianças, polarizando ideias e semeando exemplos, votaram-no a uma morte infamante e ignominiosa, como perturbador e como impostor.

    Alguns dos homens de hoje, mais liberais, mais tolerantes, como grato agradecimento de estarem gozando do bem por ele generosamente difundido, consolam-se de o não poderem matar novamente, suprimindo-o.

     Entrou em moda negar Cristo e negar Deus. A negação passou a representar uma manifestação de esnobismo, e uma necessidade social.

    Quem queira ser notável no mundo, e proponha a sua candidatura a homem célebre, tem de inscrever, como artigo primeiro do seu programa, a negação deísta.

    É chique e é útil. Celebriza-se rapidamente o super-homem (como é moda agora dizer-se) e dispensa-o do atestado de vacina, de bons costumes, e de provar que tem alguma coisa dentro do crânio.

    Realmente, Deus é um empecilho.

    Pode lá admitir-se que haja alguém com direito de apreciar os nossos atos, sabendo mais do que nós, podendo mais do que nós, e, pior do que isso: que se conserve sempre, impertinentemente, fora do alcance da navalha com que aí se pode atassalhar1 a vida e a reputação alheia?

     Dentre os que o confessam há ainda duas classes: - os que o amam por instinto, por educação, por tradição, e até, às vezes, por uma pontinha de egoísmo, e os que o servem, e a quem a sua existência representa uma utilidade, e constitui rico manancial a explorar.    

     Raros serão aí os homens que o amem e sirvam em elucidada consciência, e como íntima manifestação da sua alma agradecida.

     Raros serão aqueles que o admirem na sua ação permanente e fecunda; no fulgor da sua justiça, na doçura da sua bondade, na força do seu poder, na grandeza suprema da sua vontade e da sua onisciência.

     Raros serão aqueles que o encontrem na asa do inseto, como no fragor das tempestades; na ação instintiva dos protozoários, como nas criações portentosas do cérebro humano; no poder terrível dos infinitamente pequenos, como na luz potencial dos sóis: - poeira luminosa que gira no espaço infinito a marchetar o manto do Universo.

     Raros serão os que o saibam ver nos fenômenos da Natureza, nos segredos insondáveis da Criação, na suprema ordem, na eterna regência das leis que prendem, dominam e harmonizam o existente.

     Abstraindo a parcela rara da humanidade que o vislumbra em tudo, e o ama como Ele deve ser amado, para o resto do gênero humano Ele existirá ou deixará de existir, conforme a vantagem ou desvantagem que a sua existência possa ocasionar.

     Uns negam-no, porque lhes simplifica o problema e aquieta escrúpulos de consciência, amordaçando assim os protestos da dúvida; outros creem na sua existência, e, amoldando-o à sua fantasia rasteira, semelham-no a um homem respeitável, ou coisa de pouco mais, de brancas barbas intonsas2, calva a S. Pedro, ar venerando e sisudo de patriarca bíblico.

     Supõem-no individualidade que preside a todos os atos humanos, ainda os mais pueris; juiz fero, argos3 universal, que tudo vê e bisbilhoteia, e que, em gestos solenes e pesados, distribui o sol e a chuva, conforme lhe pedem.    

     Creem-no a beneficiar uns filhos em detrimento dos outros; e que, depois de ter escravizado à dor, nesse mundo, aqueles com quem não simpatiza, ainda os condena às eternas penas do inferno, só para se dar ao luxo neroniano4 de ver ígneos torresmos humanos, ou de pitadear carne tisnada, esmagando-a entre os dedos, como os átomos do célebre luminar coimbrão.

     Pessoas de digestão difícil, sujeitas a pesadelos, pitam-no iracundo, despedindo raios, trovejando ameaças, deliciando-se em torturar as crianças e os velhos, e entretendo-se em jogar aos dados, com o seu eterno rival, o decrépito Satã. As almas dos míseros bichos humanos, que em desenfastiado momento colocou no mundo desamparadas, entregues a si próprias, ignorantes e indefesas para reagir às argutas tentações do velho e engenhoso Demônio; entregando-lhe aquelas que não conseguem fazer o que Ele, o próprio Deus, não conseguiu: - dominar e vencer a astúcia do velho e solerte Belzebu.

     Os de espírito forte, que pascem5 livres teorias pelas vastas campinas da Razão fria, sob o olhar vigilante e protetor da Ciência positiva, liquidaram mais limpamente o embaraço com a supressão completa. Não estiveram para perder tempo, procurando desatar o nó - cortaram-no com a espada flamejante da sua independente sabedoria.

     Não estranhem se dentre a intelectual coorte de negadores, encontrarem o carroceiro soez6, o sapateiro filósofo, em igualitária promiscuidade com o sábio da academia, e com o luminar da medicina que procura a alma com a ponta do seu bisturi. Isso nada faz ao caso.

     A inteligência, a esperteza, e a arguta previsão das coisas, não escolhem classes nem cérebros para fazer o seu recrutamento.

     A luz científica que ilumina os mais recônditos recessos do desconhecido, tanto pode acender-se no cérebro alcoolizado de um catedrático da taberna, como no de um catedrático de universidade.

     Em ambos pode fulgir a centelha do gênio que os leve, argoladamente, à desvendação do mistério máximo, que tem resistido, impenetrável, à investigação humana.    

     Não se admirem. O saber em qualquer parte se aninha e enrosca; e para ver claro onde toda a gente encontra densa treva, tão de lince podem ser os olhos oculados dos homens da ciência, como os olhos blefaríticos7 dos videntes de tripeça.

     Les beaux esprits...

     Não quiseram, porém, na sua científica previdência, deixar a pobre Humanidade sem ídolos para adorar. Reconheceram que o coração humano carece de um ideal superior que o alimente e fortaleça; que o sentimento exige alguma coisa de grande, de infinitamente grande, para admirar e amar. Para substituir nessa indispensável adoração o velho Deus, que escavacaram, inventaram o deus-Homem, por já estar fora da moda a sanguinária deusa Razão, da revolução francesa.

     Endeusaram-no, sublimaram-no; proclamaram a sua onipotência e a sua libertação do preconceito e da Religião, e a sua rebeldia contra Deus e contra o diabo.

     Começaram, entretanto, a reconhecer que a matéria mole e putrefactível de que esse deus era formado, não tinha muito durável conservação, nem aplicando-lhe os mais apurados ingredientes dos salchicheiros de Chicago. Recorrera, salvadoramente, aos grandes homens simbólicos da História - vasto e provido depósito de sublimidades, onde se podem escolher, a preço módico, deuses para todos os paladares, à vontade do freguês.

     Talvez lhes sorrisse, vagamente, a esperança de virem a ter ali apetecível guarida, e poderem ser um dia também escolhidos para fetiches, se voltarmos à perfeição lendária dos animais falantes, e os burros tiverem necessidade de escolher deuses...

     E bem o haverão merecido, por terem visto a tempo que os grandes homens vivos não serviam para as altas funções em que os queriam investir. Enquanto vivos, nenhum deixaria de quebrar a gravidade augusta, necessária a um deus, à picada coceguenta de qualquer inseto iconoclasta; depois de mortos, o característico odor das suas divinas carnes em fermentação, não seria excessivamente agradável aos seus fiéis.    

     Estes preciosos ateus, videirinhos8 da anarquia intelectual, e apaixonados adoradores da Ciência soberana, admitem que um frágil instrumento de óptica perscrute o infinito; que se possam medir, sem esforço, as distâncias incomensuráveis, representado-as em rosários de zeros intermináveis e fecundos como os anéis de uma solitária; que se contem as bactérias que uma gota d’água contém, e os micróbios que repastam em um cão morto, beijado pelo sol do combro9 de um valado; mas insurgem-se, como heroica libertação do intelecto e da consciência, contra a possibilidade de que não haja manifestação sem causa, e de que, para no Universo existir em as leis, que são forçados a reconhecer, para existir matéria que se transforma incessantemente dentro de uma lei imutável, e vida, que tudo anima e agita, é indispensável haver uma fonte de onde tudo dimanasse ou um obreiro que tudo fizesse e sabiamente regularizasse.

     Divinizam homens porque constataram a existência de algumas das leis naturais, e lhes indicaram a função e a ordem, sem jamais lhes terem atingido a origem; e repudiam esta necessária origem, só porque ainda não conseguiram percebê-la, conquanto ela se aperceba e constate nas mais insignificantes manifestações daquelas leis.

      Enaltecem o pioneiro que descobre um continente novo; o que investiga e descreve novas e não sonhadas manifestações da fauna, da mineralogia; o que arranca um átomo à força universal e lhes dá a eletricidade; o que, num acaso feliz, conquistou o vapor; os que, vislumbrando o começo de infinitos segredos, lhes deram a luz invisível, a irradiação da matéria, a etérea onda vibratória, a luz permanente e indestrutível, o conhecimento dos organismos infinitamente pequenos, a conservação ou a condução dos sons; enfim, alguns dos pequenos  nadas que constituem esquírolas do grande Todo; e simulam grosseiro desdém pela inconcebível maravilha que é esse Todo, e pela Entidade que o deve ter organizado.

      E porque essa desigualdade injusta? E porque essa vesânia10 na apreciação?

     Naturalmente porque a entidade minúscula, a quem por mercê da necessidade evolutiva coube a primazia no encontro do continente, na apropriação de segredos naturais da matéria e da energia, desde sempre existentes, e na fixação à sua condicionalidade e aproveitamento, foi o homem - o deus homem.

     É de notar, porém, que para ele constituir o fetiche11 destinado à admiração cultual das gerações, o fragmentário sucessor de Deus no respeito e no misterioso amor da consciência humana, é indispensável ter transitado pela confraria dos grandes sábios, e ter-se-lhe aposto a marca oficial, registada,12 para que, só depois da morte, possa ingressar no panteão dos imortais, e seja exposto à veneração fetichista das pobres criaturas que procuram enganar, com essas vãs manifestações adorativas, a necessidade irreprimível do seu coração e do seu pensamento.

     Enquanto forem vivos, e possam roçar ombro com ombro com os adoradores, estes não lhes veem senão os calcanhares de barro da organização humana, para os depreciarem, para os rojarem,13 puxados pela corda da maledicência, até ao plano raso e sujo onde vegeta a massa vulgar, anônima, envilecida.14

     Enquanto é vivo, não pode escapar-se aos efeitos da moderna doutrinação da igualdade, e há de subordinar-se à craveira15 comum, como os hóspedes de Procusto16 ao seu leito.

     É um fruto da atual concepção igualitária. Se não podem atingir a altura dos mais elevados, comprimem-lhes as qualidade até os descerem a igualá-los na baixeza. É a aplicação plebeia17 do corte das papoulas de Tarquínio.

     "Nada que nos sobreleve", é o moderno grito de guerra social, que se repercute por todas as escalas da atividade humana.

     O homem extasia-se ante vulgares manifestações artísticas em que se consigam imitar, com sucesso, as belezas naturais; mas passa indiferente, enjoado, junto às belezas imitadas, e ouve, apático, os mais harmoniosos sons da criação.

     Se uma pintura revela perfeição, como cópia de uma paisagem, toda a gente a admira, e rebusca-se os adjetivos mais laudatórios para se acariciar a vaidade e o amor-próprio do artista que a executou.

     A mesma artística e conscienciosa gente admiradora é colocada em frente do trecho natural, de que a tela é pálida imitação, e olha-a com suprema indiferença, quando não com olímpico desdém.

     Só os poetas, criaturas exóticas no prosaísmo da vida, cantam as maravilhas do Som e da Cor.

     Não raro nos seus exuberantes e sentidos trenos18 à Natureza, sucede confundirem as cores, os termos, e a ideia das coisas, como indivíduos alheados à realidade dos fatos, e afastados da simplicidade, da grandiosa simplicidade, dessa mesma Natureza, que poeticamente se arrojam apreciar.

     São quase só eles, idealistas da palavra, que professam o culto panteísta; mas fazem-no sem a sinceridade que lhe torne sentida e verdadeira a emoção, sem o sentimento que dê vida e sensibilidade aos seus cantos. Lugares comuns, imagens avelhentadas19 ou esotéricas, rebuscadas pacientemente na torturante preocupação da rima em frente de uma poética e de um dicionário, tudo lançado na adamantina armadura da metrificação, sem outra orientação sincera e positiva que a de encadear palavras, numa consonância cadenciada e musical, que os torne admirados como ricos lapidários ou artísticos buriladores da forma.

     Ainda assim são eles que abordoados ao seu simbolismo poético, na sua vida de sonho e de despreocupação, fazem oscilar o turíbulo incensador a Deus, pelas maravilhas que intuitivamente reconhecem ela ter criado. E não são todos os poetas que turibulam20 Deus, não.

     Não só os que voejam pelas supremas regiões do ideal; porque os outros, os que conseguem a atroz satisfação de pisarem a terra, como qualquer pessoa de carne e osso, enxertando o florido rebento do idealismo na carcomida árvore da realidade, ou mascando a amarga raiz da ciência, como qualquer marinheiro inglês masca tabaco, desembestam em atrevida e irreverente arremetida contra a ideia de Deus, num satânico gargalhar de blasfêmias, em epicurísticos cânticos ao Gozo, ao Ouro e ao Diabo.

     Tem o homem uma queda natural para falar do que não sabe. É vulgar os que conhecem bem uma matéria retraírem-se, absterem-se de falar sobre ela, como um avaro se abstém de falar no tesouro que lhe custou a amontoar.

     Os outros, porém, que só superficialmente conhecem um assunto, dão-se a intermináveis apreciações a respeito dele, como que dominados pela preocupação única de darem, a quem tem a desgraça de ouvi-los, a impressão de que o conhecem, de que lhes é familiar e não lhe reservou segredo.

     Deves ter visto em frente de qualquer coisa em exposição, pessoas abstratas na contemplação dos objetos em evidência, caladas, concentradas, e tanto mais atentas quanto mais artístico, ou mais invulgar é o motivo do seu exame.

     Em orientação contrária deves ter visto tagarelas, falarem do que veem, com grande despejo e atrevimento, dizendo  banalidades e toleimas, pegadas umas nas outras, como as contas de um rosário de velha beata.

     Falam, falam sempre, sem se importarem se incomodam ou irritam os ouvintes, vítimas da ignara loquela21 do insciente21A crítico.

     É de todos os tempos a anedota do sapateiro de Apeles,22 que por ter sido atendido na sua crítica à sandália, se permitia o luxo de dar opinião sobre a estética da perna.

     Os néscios que presumem saber em qualquer assunto, não admitem, ciosamente, que outrem os contradiga. Se, de fato, sabem, limitam-se a sorrir, desdenhosamente, às proposições alheias, quando as não capitula de parvas; se não sabem, entregam-se a um grande dispêndio de argumentação pretensiosa, destituída de lógica, falha de senso e de probidade.

     Não hesitarão ante dificuldade alguma. Sustentarão os mais engenhosos disparates, como as mais disparatadas teorias, sem outra intenção que a de mostrarem que sabe, e de, pela propositada confusão, estabelecerem a dúvida ou a perturbação no espírito alheio, como as têm no espírito próprio.

     Vê-se isso nos que falam e vê-se nos que escrevem.

     Há lindos períodos literários, cheios de sonoridade, de um sabor esquisito e original, propositadamente encastelados e pacientemente cerzidos, que não resistem à mais ligeira análise do senso prático. Falta-lhes a propriedade, por faltar o conhecimento específico a quem os manejou. Perante a verdade e a arte são um aborto; e em face do saber próprio a cada assunto representam um atentado, que, pela enormidade, desperta o riso como um ataque de cócegas.

     Há frases feitas, que repetem de mnemônica,23 como quem reza maquinalmente o padre-nosso. Em qualquer lugar as encaixam, sobre qualquer motivo as dizem, como um ritornelo24 cantante que lhes afaga o ouvido.

     E, infelizmente, esses são quase sempre triunfadores.

     São os atrevidos. Avançam aos encontrões à lógica, ao senso comum, e à verdade, mas avançam; porque os outros se afastam enojados ou receosos, sem que da sua covardia ou da sua timidez arranquem energia para lhes embargar o passo.

     E é assim que se forma opinião. Um tolo tem sempre outros tolos que o admirem; e um néscio encontra facilmente quem lhe espalhe as necedades.25

     Luxam26 em falar das coisas de mais difícil percepção e de que mais ignoram, como se no misterioso atrativo a que obedecem encontrassem a causa primacial para atrativo alheio.

     Não trata do que lhe é familiar e vizinho. O que conhece é ínfimo. Como lhe não desperta o interesse não serve para iscar a admiração dos outros.

     Não reflete que o que imagina conhecer, lhe é tão estranho, na boa verdade, que toda uma longa existência não chegava para o apreciar em todos os seus característicos, desde a sua inicial origem até as suas derradeiras e vulgares manifestações.

     Não levo a exigência ao requinte de querer que alguém, para se presumir de sabedor em qualquer ramo da inteligência humana, carecesse profundar, até às raízes, os conhecimentos que enobrecem e enriquecem essa inteligência.

     Era uma aspiração que conduziria aos hospitais de doidos quem tentasse dar-lhe realidade.

     O meu querer, porém, é razoavelmente simples. Entendo que ninguém se deve meter e prelecionar senão em assunto que vulgarmente conheça, e a que particularmente haja dedicado a sua atenção e o seu estudo.

     Acho nobre um ignorante que confessa ignorar; acho intolerável quem se gabe de prendas que não possui e se jacte de ciência que lhe é estranha.

     Cada um em seu lugar.

     Quem estuda matemáticas, poderá vir a saber de matemáticas; mas estudar matemáticas e querer dar sentenças em metafísica, é querer saber de mais.

     Os pretensos sábios daí, não conhecem do Universo, senão aspectos. Efetuam os seus estudos por tentativas, captam os resultados por induções. Desconhecem o substractum das coisas, a origem de tudo. Se o desconhecem, porque o negam?

     Se lhes fizerem a pergunta, responderão: - e se não possuem a ciência certa, porque afirmam?

     É intuitivo que essa disputada controvérsia será só entre os que aí se conservam.

     Nesta hipótese, os últimos poderão responder que, no campo da filosofia positiva, a natureza das coisas repele o princípio de que haja efeito sem causa, e que exista causa sem haver quem a haja criado.

     É a este Criador, que a consciência simplista resolveu dignificar e adorar. Não importa o nome. Batizou-o para lhe imprimir personalidade, para o fixar concretamente no seu cérebro, no seu coração, na sua vida.

     O princípio é que é tudo.

     A esse nome, ou a esse princípio, associou o homem a ideia da grandeza máxima que a sua imaginação pode vislumbrar.

     Considera-o o centro irradiante de toda a atividade e o dínamo de toda a energia. Vê nele a nascente de toda a vida, o foco de toda a inteligência, o exemplo da perfeição maior.

     Moralmente e psicologicamente, a palavra - Deus - evoca à nossa razão a ideia da esperança em nosso exaspero, e da calma em nossa angústia.

     É para ele que tendem todos os nossos pensamentos bons e elevados, como é para ele que volvemos os nossos olhos súplices, nos transes do desespero ou da aflição.

     É o refúgio a que se pode pedir acolhimento nos momentos de atribulação, quando tudo em nossa volta é já falho ou derruído; é de onde vem a derradeira consolação quando todas as esperanças são mortas, quando todos os socorros são ineficazes, quando tudo nos abandonou. É o paládio augusto onde se refugiam os desgraçados que já têm uma palavra amiga que os anime, uma ilusão que os console, uma esperança que os encoraje.

     Herdamos de milhares de gerações a sede insaciável e devoradora de saber, que nos impele a queimarmos a vida na fornalha calcinante do estudo.

     O desejo de conhecer, quando é uma aspiração consciente e disciplinada, eleva-nos, espiritualiza-nos. Temos sempre um ideal como alvo a atingir.

     Buscamos em tudo esse alvo: - a Perfeição.

     Porque persistimos em procurá-lo? Porque instintivamente, ingenitamente, sabemos que ele existe.

     Nenhum insucesso na porfia fará minguar o interesse na investigação.

     Pode desanimar um investigador ou uma geração de investigadores; mas o móbil impulsionador da investigação existe, eternamente latente, eternamente acionando.

     Buscamos sempre a origem e o destino de tudo.

     A nossa razão diz-nos que não há coisa que não tenha fim determinado, que não tenha lugar na metódica organização universal.

     Não pode haver nada supérfluo.

     Buscamos, pois, incansavelmente, a causal de tudo.

     Se o homem, nas suas longas jornadas e nos seus pacientes e seculares esforços, vem encontrando essa causal luminosa, inteligente, soberanamente perfeita, em todas as florações da natureza, desde o inseto ao elefante, do miosótis ao roble, das profundezas dos oceanos às profundezas do espaço, dos infinitamente pequenos aos miríades de mundos dependurados no infinito, desde os mistérios da força aos mistérios da luz; se em tudo vem descobrindo o seu traço ingênito, a sua vontade, o seu poder fecundo e inexaurível, porque havemos de negá-lo?

     Porque não o vemos?

     E quem vê tudo que pressente e de que conhece manifestações?

     Ninguém vê aí o som que vibra em intermináveis ondulações através do éter. Ninguém vê aí a eletricidade que plena o espaço, e que, dentro em si própria, dirigida e impulsionada pela vontade do homem, percorre distâncias sem fim, levando nas suas asas a voz e o pensamento humano.

     O índio na floresta conhece a quase invisível pegada do viajante, que não viu; o cão, no descampado, fareja o dono que está ausente. E vão dizer ao cão que o dono não existe, e ao índio que o viajante não passou!        

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Notas do compilador: 1 - atassalhar = fazer em pedaços; caluniar; 2 - Intonsas = que não são tosquiadas; 3 - Argos = príncipe grego que, conforme a lenda, tinha cem olhos, dos quais cinquenta sempre abertos; Hera o homenageou transformando-o em pavão em cuja cauda pôs os seus 100 olhos;  4 - Neroniano = De Nero, imperador romano; 5 - Pascem = agradam; 6 - Soez = vil; torpe; 7 - Blefaríticos = enganados; 8 - Videirinhos = aqueles que tratam com cuidado das suas vidas ou dos seus interesses; 9 - Combro = pequena elevação de terreno; 10 - vesânia = alienação mental, loucura; 11 = Fetiche = Qualquer coisa que dizem ter poder sobrenatural; 12 - Registada = registrada; 13 - Rojarem = arrastarem; 14 - envilecida = desprezada, humilhada; 15 - craveira = medida;  16 - Procusto = Procusto era um bandido que vivia na serra de Eleusis. Em sua casa ele tinha uma cama de ferro, que tinha o seu exato tamanho, para a qual convidava todos os viajantes a se deitarem. Se os hóspedes fossem demasiados altos, ele amputava o excesso de comprimento para ajustá-los à cama, e os que tinham pequena estatura eram esticados até atingirem o comprimento suficiente. Uma vítima nunca se ajustava exatamente ao tamanho da cama porque Procusto, secretamente, tinha duas camas de tamanhos diferentes. Continuou seu reinado de terror até que foi capturado pelo herói ateniense Teseu que, em sua última aventura, prendeu Procusto lateralmente em sua própria cama e cortou-lhe a cabeça e os pés, aplicando-lhe o mesmo suplício que infligia aos seus hóspedes (Observação colhida em www.wikipedia.org/) ; 17 - Plebeia = comum, qualidade ordinária; 18 - Trenos = lamentos fúnebres; 19 - Avelhentadas = Que se tornaram velhas; 20 - Turibulam = Queimam incenso em honra a; 21 - Loquela = Que fala muito; 21A - Insciente = Ignorante; 22 - Apeles = Considerado como o mais importante pintor da Antiguidade - século IX a.C.; 23 - Mnemônica = Técnica para desenvolver a memória; 24 - Refrão, frase repetida em contos ou versos; 25 - Necedades = Atos ou afirmações que traduzem falta de inteligência; 26 - Luxam - ostentam;

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