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CARDON, O MÉDICO

(Comunicação do Espírito Cardon - Revista Espírita de 1863).

     O Sr. Cardon tinha passado parte da vida na marinha mercante, como médico de um baleeiro e havia adquirido hábitos e ideias um pouco materialistas; retirado para a aldeia de J..., exercia a modesta profissão de médico de roça. Desde algum tempo estava convencido de que sofria uma hipertrofia do coração e, sabendo que era mal incurável, o pensamento da morte o mergulhava em sombria melancolia, de que nada o distraía. Com cerca de dois meses de antecedência, predisse o seu fim em dia fixo; quando se viu perto de morrer, reuniu a família para lhe dizer o último adeus. A mãe, a esposa, os três filhos e outros parentes estavam em volta de seu leito. No momento em que a esposa tentou soerguê-lo, ele se abateu, tornou-se de um azul lívido, os olhos fecharam e julgaram-no morto; a esposa colocou-se à frente, para esconder o espetáculo aos filhos. Após alguns minutos, abriu os olhos; com o rosto como que iluminado, tomou uma expressão de radiosa beatitude e exclamou: "Oh! meus filhos, como é belo! como é sublime! Ah! a morte! que benefício! que coisa suave! Eu estava morto e senti minh'alma elevar-se bem alto; mas Deus me permitiu voltar para vos dizer: "Não temais a morte, é a libertação..." Não vos posso pintar a magnificência do que vi e as impressões de que me senti penetrado! Mas não poderíeis compreendê-las! oh! meus filhos, conduzi-vos sempre de maneira a merecer essa inefável felicidade, reservada aos homens de bem; vivei segundo a caridade; se tiverdes alguma coisa, dai uma parte àqueles a quem falta o necessário... Minha cara mulher, deixo-te numa posição que não é feliz; devem-nos dinheiro, mas eu te conjuro, não atormentes os que nos devem; se estiverem em apuros, espera que possam pagar, e aos que não o puderem, faze o sacrifício: Deus te recompensará. Tu, meu filho, trabalha para sustentar tua mãe; sê sempre um homem honesto e guarda-te de fazer algo que possa desonrar nossa família. Toma esta cruz que vem de minha mãe; não a deixes e que ela te lembre sempre meus últimos conselhos... Meus filhos, ajudai-vos e sustentai-vos mutuamente; que a boa harmonia reine entre vós; nem sejais vãos, nem orgulhosos; perdoai aos vossos inimigos, se quiserdes que Deus vos perdoe..."

     Depois, tendo feito os filhos se aproximarem, estendeu as mãos para eles e acrescentou: "Meus filhos, eu vos abençoo." Os olhos se fecharam, desta vez para sempre; mas seu rosto conservou uma expressão tão imponente que, até o momento em que foi enterrado, numerosa multidão veio contemplá-lo com admiração.

     Esses interessantes detalhes, transmitidos por um amigo da família, nos sugeriram uma evocação, que poderia ser instrutiva para todos, ao mesmo tempo que seria útil ao Espírito. Ei-la:

     1 - Evocação. - Estou junto a vós.

     2 - Contaram-nos os vossos últimos momentos que nos encheram de admiração. Teríeis a bondade de descrever, melhor do que o fizestes, o que vistes no intervalo do que poder-se-ia chamar vossas duas mortes?

     - Poderíeis compreender o que vi? Não sei, porque não encontraria expressões capazes de tornar compreensível o que vi durante os instantes em que foi possível deixar meus despojos mortais.

     3 - Dais-vos conta de onde estivestes? É longe da terra? num outro planeta ou no espaço?

     - O Espírito não conhece o valor das distâncias, tais quais as encarais. Levado não sei por que agente maravilhoso, vi o esplendor de um céu como só nos sonhos poderiam realizá-lo. Essa corrida pelo infinito é feita tão rapidamente que não posso precisar os instantes gastos por meu Espírito.

     4 - Atualmente desfrutais da felicidade entrevista?

     - Não; bem queria poder gozá-la; mas Deus assim não me pode recompensar. Muitas vezes me revoltei contra os abençoados pensamentos ditados pelo coração, e a morte me parecia uma injustiça. Médico incrédulo, tinha adquirido na arte de curar uma aversão contra a segunda natureza, que é o nosso movimento inteligente, divino; a imortalidade da alma era uma ficção própria para seduzir naturezas pouco adiantadas; não obstante o vazio me espantava, pois maldizia muitas vezes esse agente misterioso que fere sempre e sempre. A filosofia me havia desviado, sem me dar a compreender toda a grandeza do Eterno, que sabe repartir a dor e a alegria para o ensino da humanidade.

     5 - Quando de vossa verdadeira morte, logo vos reconhecestes?

     - Não; reconheci-me durante a transição feita por meu Espírito para percorrer lugares etéreos; mas, após a morte real, não; foram necessários alguns dias para meu despertar.

     Deus me havia concedido uma graça. Vou dizer-vos a sua razão:

     Minha incredulidade primeira não mais existia; antes da morte eu havia crido, porque, depois de ter cientificamente sondado a matéria pesada, que me fazia deperecer, eu não tinha, ao cabo de razões terrenas, encontrado senão a razão divina. Ela me tinha inspirado, consolado, e minha coragem era mais forte que a dor. Eu bendizia o que havia amaldiçoado; o fim me parecia a libertação. O pensamento de Deus é grande como o mundo! Oh! que suprema consolação na prece que dá enternecimentos inefáveis; ela é o elemento mais seguro de nossa natureza imaterial; por ela compreendi; cri firmemente, soberanamente e é por isso que Deus, escutando minhas abençoadas ações, quis recompensar-me antes de acabar a minha encarnação.

     6 - Poder-se-ia dizer que da primeira vez estáveis morto?

     - Sim e não. Tendo deixado o corpo, naturalmente a carne se extinguia; mas o Espírito, retomando posse de minha morada terrena, a vida voltou ao corpo que tinha sofrido uma transição, um sono.

     7 - Nesse momento sentíeis os laços que vos prendiam ao corpo?

     - Sem dúvida. O Espírito tem um elo difícil de partir e lhe é preciso um último abalo da carne para voltar a sua razão.

     8 - Como é que, durante a sua morte aparente e durante alguns minutos, o vosso Espírito pôde desprender-se instantaneamente e sem dificuldade, enquanto que a morte real foi seguida de uma perturbação de alguns dias? Parece que, no primeiro caso, os laços entre a alma e o corpo, subsistindo mais que no segundo, o desprendimento deveria ser mais lento; e o contrário foi o que seu deu.

     - Muitas vezes fizestes a evocação de uma Espírito encarnado e recebestes respostas reais. Eu estava na situação desses Espíritos. Deus me chamava e seus servidores me tinham dito: "Vem..." Obedeci e agradeço a Deus a graça especial que teve a bondade de me fazer. Pude ver o infinito de sua grandeza e dela me dar conta. Agradeço a vós que, antes da morte real, permitistes que ensinasse aos meus, para que sejam boas e justas encarnações.

     9 - De onde vinham as belas e boas palavras que, no vosso retorno à vida, dirigistes à vossa família?

     - Eram o reflexo do que tinha visto e ouvido. Os bons Espíritos inspiravam-me a voz e animavam-me o rosto.

     10 - Que impressão julgais que a vossa revelação tenha feito nos assistentes e, particularmente nos vosso filhos?

     - Chocante, profunda; a morte não é mentirosa; por mais ingratos que possam ser, os filhos se inclinam ante a encarnação que se vai. Se se pudesse sondar o coração de seus filhos, junto a um túmulo entreaberto, só se sentiriam batidas de sentimentos verdadeiros, profundamente tocados pela mão secreta dos Espíritos que a todos ditam os pensamentos: Tremei se estiverdes em dúvida; a morte é a reparação, a justiça de Deus; e eu vos asseguro, maus grado os incrédulos, meus amigos e minha família acreditarão nas palavras que minha voz pronunciou antes de morrer. Eu era o intérprete de um outro mundo.

     11 - Dissestes que não gozais da felicidade que entrevistes. Sereis infeliz?

     - Não, pois cria antes de morrer, e isto na alma e na consciência. A dor aperta aqui embaixo, mas eleva para o futuro espírita. Notai que Deus soube levar-me em conta as minhas preces e minha crença absoluta nele. Estou no caminho da perfeição e chegarei ao fim que me foi permitido entrever. Orai, meus amigos, por esse mundo invisível, que preside aos vossos destinos; este intercâmbio fraterno é caridade; é uma poderosa alavanca, que põe em comunicação os Espíritos de todos os mundos.

     12 - Queríeis dirigir algumas palavras à vossa esposa e aos filhos?

     - Rogo a todos os meus que creiam em Deus, poderoso, justo, imutável; na prece que consola e alivia; na caridade, que é o ato mais puro da encarnação humana. Que se lembrem que se pode dar pouco: o óbolo do pobre é o mais meritório ante Deus, que sabe que um pobre dá muito dando pouco. É preciso que o rico dê muito e muitas vezes para merecer tanto quanto aquele.

     O futuro é a caridade, a benevolência em todas as ações; é crer que todos os Espíritos são irmãos, jamais se prevalecendo de todas as vaidades pueris.

     Família muito amada, terás rudes provas; mas sabei suportá-las com coragem, pensando que Deus as vê.

     Dizei sempre esta prece:

     Deus de amor e de bondade, que dás tudo e sempre, concede-nos essa força que não recua ante nenhuma pena; torna-nos bons, mansos e caridosos, pequenos pela fortuna, grandes pelo coração; que nosso Espírito seja Espírita na Terra, para melhor te compreendermos e te amarmos.

     Que teu nome, ó meu Deus, emblema de liberdade, seja o objetivo consolador de todos os oprimidos, de todos os que têm necessidade de amar, perdoar e crer.

      PRÓXIMO                                                                                                           INÍCIO