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Quadro (A peregrinação à ilha de Kythera) de Jean Antoine Watteau, pintor citado na mensagem

Camilo Castelo Branco, português, romancista, cronista, crítico, dramaturgo, historiador, poeta e tradutor. Foi ainda o 1.º Visconde de Correia Botelho, título concedido pelo rei D. Luís.

CAMILO ELOGIA JÚLIO DINIZ

 (Mensagem do Espírito Camilo Castelo Branco - 20/11/1906 - Obra: Do País da Luz - volume 1 - Médium Fernando de Lacerda).  

     De duas coisas leves vou tratar. Começarei pela última por ser a primeira na ordem da minha atenção. Quero referir-me à comunicação que acabas de obter. É realmente ela daquele doce ideólogo que imortalizou o pseudônimo de Júlio Diniz.

     Vê, amigo, vê que descomunal contraste entre a sua comunicação simples, tranquila como a alma de um justo, e as minhas, refervendo dor e remorso. Uma é o lago onde se espelha o céu azul e onde as rosas da margem se debruçam e remiram; as outras são o tumultuar das ondas indômitas, refervendo o lodo e a vasa, arremessando contra as rochas escarpadas e arrendadas de mil agulhas, o corpo dilacerado e sanguento de um náufrago infeliz do batel da vida.

     As nossas comunicações são as nossas obras; por elas avaliarás tu o nosso trabalho aí e o seu produto aqui.

     A sua obra no mundo é o jardim florido e ensombrado como assunto de um quadro de Watteau, onde os namorados se acolhem, escondidos do mundo e da dor, para viverem amando e amar sorrindo na idílica satisfação de uma felicidade apenas sonhada; a minha é a floresta virgem do machado do lenhador, eriçada de silvedos1 e de espinheiros, onde toda a gente se perde, onde se ama sofrendo, onde se sofre maldizendo; onde a alma mais cândida se revolta, onde a cada passo se encontram as feras de hiantes2 goelas escancaradas, que se chamam traição, latrocínio, desprezo, ódio, ironia, ridículo, raiva, desespero e morte. Aí tudo ruge. As flores são como a mancenilha3 e a arruda. Matam ou fedem. Os pássaros são agourentos como a coruja ou o mocho, repelentes como o vampiro, ou carnívoros como o abutre. A cada momento se encontram venenosos e viscosos répteis, que nos mordem e envenenam; e as criaturas boas que pretendem atravessar essa ruim floresta, fazem-no cheias de lágrimas e cheias de sofrimento.

     Alguma coisa há, porém, de útil na minha obra.

     De útil e de bom. Também nessas florestas existem as grandes árvores, ricas de essências desconhecidas e que a custo se alcançam por grande preço; as madeiras odoríferas e sãs para as construções monumentais; a urze e o tojo para o aquecimento do homem; mas que de trabalhos e riscos para se ir, na conquista para a utilidade geral dessas riquezas, a tão ruim lugar!

     Quantos, ao irem buscar a sombra que refrigera, encontram a mancenilheira4 que os mata; a flor, que os encanta, encontram os espinhos, que os dilaceram; a madeira para o seu edifício, encontram a trave que os esmaga; a urze que os aqueça, e encontram nela o réptil que os morde! Só os fortes, os revoltosos e os intimoratos conseguem arrancar dela o bem sem muito se contaminarem do mal.

     Os fortes? E quem são os fortes? São os audazes ou são os refletidos? Os audazes são os aventureiros, os loucos; os refletidos são os serenos, são os dominadores.

     As obras serenas são a melodia da grande orquestração universal. Deleitam, comovem, avassalam e dulcificam.

     Fazem menor ruído mas inebriam mais a alma.

     As obras audazes e revoltosas ouvem-se mais longe; semelham o ruído das trovoadas. Escorcham, deslumbram, ensurdecem. Lembram marchas de guerra, troar de canhões, gritos convulsos de moribundos, berros selváticos de triunfadores. Como que cheiram a pólvora e a sangue; evocam a dor e a destruição.

     As obras refletidas e suaves recendem à murta e ao rosmaninho5; lembram a frauta6 do pastor tocando as modinhas populares, às trindades, no campo; consolam e ameigam como cânticos de virgens em festa aldeã; ou comovem e sensibilizam como a primeira missa dum presbítero. Tudo paz, com a acariciadora claridade de um dia outonal.

     Quem serão realmente os fortes? Os simples e bons como Gomes Coelho, ou os revoltosos e torturados como eu?

     Enquanto se ler português há de ler-se, e talvez amar-se, a minha obra; enquanto houver bondade e amor no mundo, há de compreender-se e estimar-se a obra de Júlio Diniz.

Notas do compilador: 1 - silvedos = o mesmo que silvados (cerca viva destinada a impedir a passagem de animais); 2 - hiantes = que mostra uma grande abertura, que está cheio de apetite; 3 - mancenilha = fruto da mancenilheira, semelhante a uma pequena maçã; 4 - mancenilheira = árvore originária das Antilhas e da América equatorial. Sua seiva, cáustica, é muito venenosa; 5 - rosmaninho = planta aromática, rosmano, alecrim. A flor dessa planta; 6 - frauta = o mesmo que flauta.

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