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BOAS-FESTAS?

(Artigo de autoria Espírito Eça de Queirós - Obra: Do País da Luz - volume 4 - Médium: Fernando de Lacerda).

     Não venho a dar boas-festas a ninguém.

     Sabes quanto detesto essa costumeira banal que a maçadoria civilizada inventou e sagrou em nota distinta de bom tom, caída hoje, merecidamente, na exploração charra dos barbeiros e distribuidores de correspondência.

     Esse costume, que no seu início devia ter tido a leveza dos sonhos lindos e a simpatia dos sorrisos infantis, criados para saltitar, naturalmente, nas rodas íntimas de pessoas de sociedade, como se usasse punhos de rendas d’Alençon e cabeleira artisticamente empoada, saiu, pela imitação simiesca das classes inferiores, daquela atmosfera perfumada e sutil e começou a arrastar-se burguesmente, cabelos oleosos, mangas d’alpaca em rabona1 coçada, pelas salas onde os pianos desafinavam em desafio com os guinchos sentimentais de meninas casadouras, e as boas donas de casa, matronas guardadoras da hospitalidade antiga, que distribuíam chá e torradas, lá pelas onze da noite. Daí, como histrião avelhentado2, de pernas tortas e estropiado de reumatismo, saiu também e começou a arrastar-se pelos botequins, pelas barbearias, impondo-se em destacantes letreiros nos cristais espelhados, como súplica lamurienta; ou, às cavalitas dos cocheiros e dos empregados dos correios, passou a entrar como saque no nosso orçamento anual.

     Nada. Conscientemente não perpetro o delito contra o bom gosto de servir de tributário a esse velho costume imbecilizado, que faz lembrar um rico vestido de noiva a acabar os seus dias em panos de limpar o pó.

     E, depois, isto de dar boas-festas...

     Quem pode dar boas-festas?

     Quem as tem, sequer, para uso próprio, em uma época de vertigem doentia, em que todos se debatem numa farândola3 infernal, minados de ambições, de desgostos, de invejas, de medos, de ódios e mais coisas ruins e terríveis, como se Pandora4 tivesse despejado novamente, torrencialmente, sobre essa malfadada humanidade terrena, todo o conteúdo pestífero da sua boceta5 encantada?

     Parece-me que não há por aí ninguém de cérebro tranquilo, ou de coração aquietado, que recebesse de sorriso inocente e amigo alguém que lhe levasse, como nota de paz e de amor, uma manifestação de boas-festas. As pessoas daí, com cérebros e coração quietos, ou não, apreciam muito as notas, mas só de Bancos que as paguem.

     Com estas farão festas a seu gosto, mais rijas, mais saborosas, que as que lhes dão, a seco, em expressões de duvidosos sentimentos. Com elas comprarão paz e amor, dessa paz e desse amor que se fabrica e vende à bom marché, como se fabrica e vende puro vinho do Porto em Hamburgo e verdadeira Champanha na Bairrada.

     Que valem, realmente, boas-festas?

     Para alguns, representam a lengalenga chorona com que se pede esmola; para outros, o verniz lisonjeiro com que se lustram as botas protetoras. Equivalem a anzol com que se pesca popularidade, ou a insidiosa armadilha de caçar cartões distintos para simular relações ricas e importantes, dominadoras na sociedade, que, à inveja dos que rolam na mó de baixo, parecem envolvidas em ares sagrados, em auréolas misteriosas de raças divinizadas.

     Ora, pois, se não queremos pedir esmola, lisonjear alguém, caçar protetora benevolência, ou mostrar bilhetes brasonados que nos desvaneçam com supostas relações fidalgas, deixemos que o costume se arraste ao serviço de quem lhe possa aproveitar o préstimo. Que faça cada um festas boas ou más, como tiver na vontade, sem que lhas vamos tornar piores com a maçadoria impertinente que só representou de carinhosa usança, quando as sociedades viviam agremiadas em patriarcal familiaridade, sem as vertigens do luxo, das viagens, dos automóveis, das eletricidades, que, em sementeira de egoísmos e de invejas, vieram pôr as relações sociais numa expectativa hostil, num íntimo mal-estar mal escondido.    

     Aquelas antigas fórmulas protocolares de uma cortesia amiga e distinta, que obrigavam ao comércio amiudado da troca de bons sentimentos e de bons desejos, desapareceram numa pulverização confusa, imoral, cosmopolita, negativa de toda a solidariedade e de todo o afeto sincero.

     Se não dou boas-festas, como coisa que não tenho para distribuir com gentil generosidade, não quero deixar que o ano novo entre, burocraticamente, no exercício do seu cargo, sem que por ele eu traga palavras de lembrança e de simpatia àqueles que eu ainda amo, aí, e àqueles que porventura possam lembrar-se de mim.

     Essas palavras são: recordo-os com saudade.

     Não pensem, entretanto, que é saudade por não estar aí com eles... Não. É, ainda que isso os assombre, de não estarem já comigo...

     Quando olho daqui para esses a que me prendem laços fortes de amizade e de amor e os vejo afastados uns dos outros, esmagados por sofrimentos, aperta-se-me o coração. Nenhum vejo fruir a paz, a doce paz, onde a alegria canta e a felicidade faz ninho. Por sobre todos adeja a Angústia ou a Incerteza. Nenhum olha, sem estremecer de raiva ou de inquietação, o minuto seguinte. O futuro apresenta-se a todos como nuvem temerosa, prenhe de borrascosas tormentas, e a vida balança-se-lhes na ressaca agitada, como xaveco sem governo. Os mais fortes hesitam e temem; os mais fracos tremem e apavoram-se.

     E o que se passa com aqueles que venero com o meu afeto, passa-se com todos os outros, aqui, ali, em toda parte, nesse mundo.

     Não há cérebro, dos que se dão ao trabalho de pensar, que não esteja em desordem, como espelho minúsculo do estado em que se encontram as sociedades a que pertencem. Está tudo revolucionado. É uma revolução geral, de alto a baixo, distribuída a retalho aos domicílios.    

     A desorientação espalha-se, profunda, ataca por toda a parte, como poeiras microbianas que o vento transporta. Nasce das lamas das ruas, pulveriza-se, voa, pousa nas consciências, nas almas, no juízo, como nos comércios, nas indústrias, nas sociedades, nos orçamentos caseiros e nos orçamentos dos povos. Nas cabeças e nos corações pululam pensamentos e sentimentos antagônicos que se chocam e se guerreiam, como nas velhas mágicas aparatosas lutava a linda fada do Bem com o vermelho gênio do Mal.

     Ao invés, porém, do que sucedia nas mágicas para gáudio das crianças e dos espíritos simples, que apeteciam o triunfo da justiça como calmante para um sono tranquilo, cheio de deliciosas fadas e de alçapões benévolos, o que triunfa quase sempre é o gênio do Mal.

     O que vence, nesses círculos de luta, comprimidos pelas paredes cranianas, é o atleta que firma as suas forças no ódio, no egoísmo, na audácia sem escrúpulos, no desprezo pela bondade e pelo interesse dos outros; e daí toda a confusão babilônica em que tudo se baralha e move.

     Devo dizer, em ar de explicação, que não tomo, no meu cômputo de cérebros, essas cabeças que muita gente conduz nesse mundo, empoladas e erguidas sobre os ombros, que podem servir otimamente para cabides de chapéu e de carapuças, ou para seção ambulante de parque zoológico, mas que não prestam para delicada e fina retorta onde se elabora e destila a sutil essência do pensamento humano; nem considero coração esse músculo vermelho e duro, simples êmbolo do sangue que circula nas artérias e nas veias, e que, nesta animal qualidade, pode jogar primazias com os seus congêneres de qualquer alentado boi de charrua, ou de preguiçoso suíno na engorda; mas nunca poderá semelhar o espiritual espelho onde possa refletir-se e de onde possa projetar-se toda a gama rica dos sentimentos humanos.

     Os possuidores de tão rudimentares preciosidades vivem habitualmente na doce paz das jiboias: - comem, digerem e dormem.    

     Se o ano-novo surge aí numa alvorada vermelha de sangue, escura de incerteza, rumorejando estertores e gritos de dor e de agonias; se em cada peito divisamos, dilacerando, o sofrimento; se as almas se repelem e os povos se trucidam, ou aprestam, formidáveis, para a chacina horrenda e universal, como havemos, nós outros que daqui seguimos ansiados a marcha da avalanche, falar em boas festas, como parvos despreocupados da sorte que a todos espera?

     E, nesta altura, deixa que espraie a vista pela crosta pardo-verde desse mundo, na busca da Paz, da Caridade e do Amor, que tantos iluminados têm pregado e que tantos martírios têm santificado.

     Onde se encontram? Onde se encontram?

     Andam, talvez, a procurar nesse mundo quem realmente goze de boas-festas...

Notas do compilador: 1- rabona coçada = casaco de abas curtas gasto pelo atrito; 2 - histrião avelhentado = homem abjeto, homem envelhecido; 3 - farândola = bando de maltrapilhos; 4 - Pandora - (mitol. grega) = A primeira mulher, criada por Hefaístos por ordem de Zeus, que lhe deu de presente uma caixa onde estavam encerrados todos os bens e todos os males. Epimeteu, o primeiro homem, que desposou Pandora, abriu a caixa, e todos os bens e males se espalharam pelo mundo, ficando apenas, no fundo dela, a esperança; 5 - boceta = pequena caixa.

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