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AS ÉPOCAS, AS DATAS

(Mensagem do Espírito Júlio Diniz - Obra: No País da Luz - médium Fernando de Lacerda).

     Está a findar um ano. Mais um período desses que os homens criaram para rememorar fatos e sentimentos, vai entrar na ordem das coisas saudosas.

   No começo dele defendi este singular costume humano; mostrei-me adepto do hábito imemorável de singular por datas, como os romanos faziam por pedras, os acontecimentos que saem fora da vulgaridade comum, tanto na vida do homem como na vida das sociedades e do mundo.

     É verdade que o dia de amanhã será sensivelmente igual ao de hoje, e que, perante as pessoas práticas, não traz, na ordem subjetiva, coisa que mereça o sacrifício mental de criar mais uma recordação para um lapso de tempo, automaticamente encerrado, e abrir uma aspiração para outro lapso de tempo, que automaticamente se inicia, arrancado ao bloco da eternidade.

     Há quem diga que o homem, fixando épocas, pretendeu emendar a obra do Criador, querendo estabelecer a desigualdade onde Ele determinou a uniformidade.

     Não é bem assim. Deus em coisa alguma criou a uniformidade senão nas leis por que se rege o Universo. E são uniformes porque têm um princípio imutável em que assentam, conquanto a lei que rege um fato seja desigual da que rege outro.

     Iguais na imutabilidade somente. No restante, como em todas as outras coisas do Universo, existe a desigualdade absoluta.

     É a mesma igualdade que existe na lei que rege o princípio de vida. É tudo igual em nascer, é tudo igual em morrer. Dentro destes polos a desigualdade é completa.

     Não há duas flores, não há dois sentimentos, não há duas criaturas de inteira semelhança. Ora, o homem, convencionando períodos, aproximadamente iguais entre si, que lhe marquem na reminiscência fatos e ideias, que sem eles cairiam no olvido ou na confusão, não fez mais que imitar o Criador.

     Os anos, no seu período astronômico, englobam todas as coisas, boas ou más que dentro de si ocorreram; e, no fim de cada um, o homem põe-lhe uma referência numeral, e guarda-o na sua memória. Não é uma convenção arbitrária e luxuosa. É antes a satisfação a uma necessidade, de outra forma irremediável, criada pela civilização.

     Se há quem dela se aproveite para festas e saudades, para risos e lágrimas, também há quem a utilize para as exigências práticas do Deve e Haver.

     Estes, que aproveitam da vida a sua feição concreta, para sugarem dela todo o produto útil, como as abelhas sugam das flores a parte útil para uso da sua colmeia, não desdenham os períodos fixos em que se vencem letras, em que recebem os seus rendimentos, em que impõem ou se desoneram de obrigações; e não riem, em desdenhoso desprezo, do período astronômico em que o convencionalismo resolve voltar as costas ao período anual esgotado, ao fecharem os seus balanços e ao arrumarem as suas escriturações.

     E não há nada mais prosaico, creio eu, do que estas comerciais operações.

     Queixam-se contra o convencionalismo. Chamam-lhe cárcere estreito, onde o homem se debate, como a avezita na armadilha, ou a mosca na teia da aranha.

     Não sei se têm grande razão nos seus clamores.

     A meu ver, o convencionalismo é uma manifestação da inteligência e do interesse coletivo. Existe até, como raciocinada deliberação, nos animais inferiores. É o produto do saber e do querer, longamente adquirido. É filho do hábito, e o hábito é a sequencia das coisas semelhantes, conduzidas do modo que se supõe melhor.

     O carreiro da formiga, a estrada do homem, o trilho do leão das selvas, é tudo convencionalismo. É o meio mais cômodo de chegarem a um fim.

     Estabeleceu o homem regras em que voluntariamente se comprime? Ainda bem. A civilização terrena e a perfeição eterna, não se podem atingir na liberdade sem limites.

     A liberdade absoluta leva o homem à animalidade; e da animalidade saiu ele, pelas restrições que foi estabelecendo a si próprio à medida que se distanciava das feras. É o convencionalismo, como manifestação civilizadora, que distingue o homem ilustrado do ignorante, o civilizado do bárbaro, o bom do mau.

     A convenção, se lhe impõe respeito, também lhe imprime autoridade.

     Chamem-lhe o que quiserem; mas o fato que o convencionalismo traduz, é que não pode deixar de existir, porque representa a satisfação a uma necessidade natural.

     Será um tecido de futilidades e bagatelas, como lhe chamou o Eça, será; mas se não querem que seja de tão mesquinho fio, escolha o homem melhor fibra de que teça a rede que lhe contenha os meus instintos, tão prontos a aparecerem a mais leve arranhadura, para o manter no honroso lugar, que lhe foi distribuído na escala da criação.

     Querer romper esse tecido, para livremente se espalharem pelas regiões que a liberdade não limita, é romper uma jaula de feras bravias à beira de um povoado, ou abrir um dique que represe águas para serem sábia e utilmente aproveitadas, ocasionando, com a livre invasão, o arrasamento de tudo.

     Há incontestavelmente, muita coisa banal ou má no convencionalismo em que aí se vive; mas em vez de se atacar a instituição nos seus fundamentos, procure-se antes reformar ou suprimir o que ela tenha de condenável, e substituí-lo por novos preceitos, nascidos do saber, da prudência e do aperfeiçoamento humano.

     No convencionalismo está a segurança da paz e da ordem; a pureza no amor; a equidade na liberdade; o trabalho na ciência; a civilização, enfim.

     Haverá alguém, que, se para tanto tivesse poder, destruísse de um só golpe o cofre que tantas preciosidades encerra?

     As épocas, as datas, não são um produto da convenção. São, antes, as formas representativas de uma necessidade. Devem ter aparecido naturalmente ao homem no momento em que ele precisou fixar, rememorar, alguma coisa de modo inconfundível e imperecível.

     Não representam ideias fúteis, antes significam conquistas da superior inteligência humana.

     Os animais inferiores não carecem de datas, porque o progresso para eles não existe.

     Encontram-se hoje, na sua vida intrinsecamente animal, como se encontravam há muitos séculos; e caminharão eternamente na livre fruição de um estado liberto de preconceitos, mas isento de perfeição e destituído de grandeza.

     Meu querido amigo. O ano vai findar aí.

     Para muitos é ele mais uma flor desfolhada na campa das suas ilusões; e para poucos terá representado a satisfação de alguma aspiração realizada.

     O tempo, que não para, deixa cair, no regaço do mundo, mais uma escama da sua epiderme, onde cada um gravará o que de agradável ou de desagradável encontrou, no curto espaço que percorreu de um de Janeiro até hoje.

     Nessa migalha pequeníssima, átomo insignificante da Eternidade, que de coisas se imprimirão!

     Cada individualidade, de per si, marcará aquelas que a fizeram gozar ou sofrer. Saudades de pessoas que lhe desapareceram, de afetos que findaram, de ligações que se partiram!...

     Todos terão pontos da sua vida que sinalar. Coisas boas de que se sente falta, coisas más de que se rejubila pela ausência. Dores que terminaram, dores que começaram.

     Sentimentos que raiaram como auroras; sentimentos que passaram como rajadas; sentimentos que feneceram como noites de Agosto, deixando no seu rasto claridades de luar e cantos de rouxinóis, ou se desfizeram como noites escuras e trovoentas de Dezembro aspérrimo.

     Todos terão que burilar nesse pequenino fragmento do Todo O Sempre, uma palavra que diga lembrança, que diga saudade, que diga gratidão, que diga amor, que diga pesar, que diga sofrer, que diga morte! Uns verão através dela um bem que se perdeu, outros um bem que se encontrou; uns, um mal que começou, outros um mal de que se libertaram; uns, um ente querido que adejou para as regiões do mistério, outros um ente adorado, que, entre beijos e carícias, iniciou a carreira tormentosa e triste da vida aí.

     Para quantos foi ele “manhã de flores” e para quantos, “noites de horrores” como disse o poeta!

     Mas o que não há é alguém para quem o tempo passasse como para os sete dormentes do conto.

     Se cada pessoa insculpe uma recordação própria, cada família, cada povo, cada civilização, o mundo inteiro, insculpirá as suas notas, as suas recordações, que lhes ficam a sinalar a existência, e o seu modo de ser no momento histórico em que se encontram.

     E, como cada individualidade humana, cada uma daquelas individualidades morais e sociais, terá de inscrever fastos luminosos e coisas enegrecidas, dias de glória e dias de pavor; ideias suaves e tranquilas como brisas do outono, e manifestações negras e destruidoras como temporais.

     Tudo isso se balanceia, tudo isso se rememora hoje.

     Nem só os argentários encerram hoje os seus livros. Os miseráveis também o fecham, selando-o com uma lágrima de desespero, e, quem sabe, quantos com contorções de fome; e abrem nova página do livro negro da sua vida, ansiosos, esperançados, de que nela venha uma palavra de conforto, ou uma carícia do destino propício.

     Para alguns, o ano que hoje finda começa a afastar-se como caravela que parte do porto, carregada com as suas melhores ilusões ou com as mais enternecidas saudades, e que vê perder-se na linha brumosa do horizonte, através de lentes formadas pelas lágrimas que lhe marejam os olhos, e fica-lhes a alma, no deserto da praia, a olhar o azul indefinido onde ela se vai perder para sempre...

     Para outros representará, talvez, a sensação da liberdade ou a esperança da terminação de um pesadelo, para - coitados! - se mergulharem de novo em pesadelo maior!

     Para ti, o ano que finda, foi profícuo. Que o ano que entra, seja, pelo menos, igual ao que te deixa.

     Tu e nós, podemos acenar-lhe, do Restelo onde os nossos espíritos se firmam, com o lenço branco da nossa saudade, ao vê-lo, no bergantim da nossa recordação, a esfumar-se, a perder-se no horizonte da vida percorrida, como as asas leves e brancas de uma pomba ideal, que se perde no infinito espaço azul da nossa fantasia.

     Felizes daqueles, que, como nós, deixam voejar, para longe, mais uma pétala desfolhada da sua vida, e a contemplam, com a infinita saudade dos tristes, até se perder no torvelinho das coisas indecisas e longínquas!

  Nota do compilador:  Júlio Diniz é o pseudônimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, médico e romancista português. Os seus romances constituem inestimáveis pérolas literárias. Foi o verdadeiro romancista da vida campestre e da simplicidade, da naturalidade. (Autor de As Pupilas do Senhor Reitor).

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