ANTHERO DE QUENTAL

Filósofo e poeta, de uma grande bondade e de uma grande tristeza. As suas poesias, especialmente os seus sonetos, são considerados modelares, e, no gênero, dos primeiros em língua portuguesa. Suicidou-se em 1891 aos 39 anos.

Esta comunicação do Espírito Anthero Tarquínio de Quental é do início do século XX, e foi recebida pelo médium Fernando de Lacerda, e está inserida no volume número 2 da obra "Do País da Luz" editada pela FEB - www.febeditora.com.br/

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     Venho cumprir a minha promessa.    

     Muito gosto sinto nisso. Cumpro assim uma obrigação, espontaneamente tomada, e tento levar aos tristes da Terra um pouco da experiência por mim adquirida à custa de tanto sofrimento.

     É do suicídio que vou falar.

     Há pessoas aí para quem o suicídio constitui uma liberdade aparente. Sentindo-se vítimas de enfermidades que reputam incuráveis, ou de desgostos que creem sem consolação, começam a olhar a vida e a senti-la como fardo pesadíssimo que as esmaga.

     Anseiam pela morte. Se creem em Deus, pedem-lha, de preferência a pedirem o alívio dos seus sofrimentos. Se não creem, maldizem a natureza ou a fatalidade das coisas, que se conserva indiferente ao martírio, e lhes não traz, presto, o termo dele.

     Não procuram pelos meios naturais, contidos em si próprios, combater o enervamento, a apatia sofredora e fatalista em que se mergulham.

     Parece que sentem um doloroso prazer em avolumarem em si próprios as  causas do seu pensar, inventando novos motivos de dor, avolumando os existentes, exprimindo a sua fraqueza por lamentos e queixumes amargurados e permanentes, criando em volta da sua personalidade uma atmosfera de desalento, de tristeza, que realmente parece não poder romper-se senão pela morte.

     Quando um sofredor chega a pensar no suicídio, esse ato maldito fica logo suspenso sobre a sua cabeça, como recurso derradeiro, como esperança sorridente!

     Não se pensa mais na libertação da desgraça pelos meios humanos, com a paciência, a resignação, a conformidade, a reação, a força de vontade, a luta encarniçada contra as causas reais ou presumidas do seu sofrer; a lembrança das pessoas queridas que fazem sofrer também, e por amizade, abnegação ou dever, eram obrigados a respeitar e afastar da sua própria mágoa, enfim nem mesmo pela dignidade própria, pela valentia, e ainda pelo medo que a morte, o desconhecido, exerce sobre todas as criaturas terrenas. Nada disso lhes acode no seu desalento. Pensam logo no extremo que está na sua mão, mas não lhes pertence: - o suprimirem a vida, que involuntariamente possuem.

     Nós, os tendenciosos  ao suicídio, desprezamos os vastíssimos recursos que Deus nos fornecem para podermos sair triunfantes da adversidade e da tentação; e recorremos só àquele que ele nos não permite usar.

     A tentação ao suicídio é um pesadelo em que nos envolvemos e de que somos tomados acordados.

     Apossa-se de nós, revolve-nos em si, domina-nos, sem nos deixar fazer o mais ligeiro esforço para o afastarmos.

     Aquele que quiser reagir, acordará desse pesadelo e reagirá. Não é preciso muita energia. Basta um pouco de vontade e de bom senso.

     Às vezes um ligeiro acidente em nossa vida, um acréscimo de dor, ou um simples prazer, inesperadamente vindo, ocasiona a reação. Bastava que tomássemos essa reação como a devíamos tomar e persistíssemos nela, para nos libertarmos, de vez, do obsessor que nos arrasta ao suicídio.

     Se nesses momentos de tréguas a razão fosse auxiliada pela vontade, o fraco, que só pensa em fugir da vida, em abandonar a luta como um desertor covarde abandona o seu posto de honra, não mais pensaria na fuga; e alma nova viria enrijar a sua fibra dessorada, e fortalecer o seu espírito abatido.

     A curto trecho os seus sofrimentos, reais ou imaginários, despareceriam, ou, quando menos, aligeirar-se-iam, por modo que já se não fariam sentir com dureza, e raiaria nova aurora de paz e de alegria, para o desgraçado, que pouco antes supusera sem remédio a sua dor e sem fim o seu martírio.

     Quantos ao lerem-me agora, sentirão na sua alma feliz a profundeza desta verdade? Quantos elevarão a Deus uma prece de conforto próprio e de louvor a Ele, ao reconhecerem que foi assim que se libertaram dos tentáculos da monstruosa pieuvre,1 bem mais terrível que a de Victor Hugo?

     E ainda não sonham o horror de que se libertaram a tempo!

     Infelizmente, quando um lampejo da razão ilumina o nosso cérebro, entenebrecido pelo desalento, nós deixamo-lo fugir, como se fosse um relâmpago que nos surpreendesse, perdidos, em noite de pavorosa tempestade. Ao clarão deste relâmpago, vê-se a paisagem negra e desolada, cheia de precipícios, de torrentes caudalosas, mas não procuramos orientar-nos, para nos não perdermos despenhados, ou envolvidos nas torrentes. A luz deslumbrou-nos e a nossa razão não a soube aproveitar a tempo para orientar-se. E lá voltamos a caminhar, às cegas, transidos de sofrimento e de desespero, maldizendo tudo, ansiados pelo termo da jornada, e blasfemando contra quem mandou o escuro, o vento e a água, e contra nós próprios, porque, não tendo podido adivinhar a tempestade a tempo de impedir a viagem, nos sentimos tomados e acossados por ela.

     Quem há que depois de uma noite assim tempestuosa, que chegou quase a supor não ter fim, ou, pelo menos, em que esperou não a acabar com vida, se não ria, o ver despontar a manhã tranquila e luminosa, dos pavores e dos receios de que se sentiu presa durante aquele tempo?

     As recordações desses eternos momentos de desespero, ficam constituindo fatos inapagáveis na sua memória, e são perene motivo para intimamente se louvar da sua coragem, se foi pela luta que se lhes escapou; da sua sabedoria se foi pela prudência; da sua fé se foi pela paciência em esperar a passagem da tormenta; e servem para citar como exemplo e conselho àqueles que se vejam em transes semelhantes.

     O suicida é o desgraçado que, surpreendido pela tempestade, se toma de espanto, e desespera do fim, preferindo deixar-se arrastar às brenhas em que se precipita voluntariamente, procurando ser esmagado. Para esse não raia a manhã que vem próxima; e não raia, não porque ela não venha imutável, serena e clara, mas porque ele não soube encher-se de coragem, para esperar, e esqueceu-se de que ela viria, fatalmente, a despeito de tudo.

     Um pouco mais de constância e firmeza, e a luz de Deus, o bálsamo suavíssimo de tanta dor quase infinita, viria espancar as trevas e os terrores apocalípticos que lhe desvairavam a imaginação, fazendo-lhe ver monstros fabulosos nas coisas em que a claridade lhe deixa ver árvores, cheias de flor e fruto, rochas lavadas e claras, assentes nos seus eternos tronos graníticos, que os séculos edificaram, e só os séculos derruirão.

     Eu fui destes, e ter-me-ia sido bem fácil ser dos primeiros.

     O meu espírito fraco, porém, não se sentia com fôlego para prolongar a resistência. A tristeza, feição natural do meu organismo, vinha pouco a pouco fazendo esboroar o pedestal de energia em que a minha razão e a minha vontade assentavam. Por cada desilusão nova, um elo vinha para a cadeia infernal que me acorrentava à dor e me puxava para o suicídio. Por fim já não carecia de motivos exteriores; eu mesmo os inventava, numa ânsia desesperada de me torturar.

     A tristeza em que me envolvia não me fazia um revoltado; fazia-me antes um resignado à fatalidade, à morte. E daí esse eterno aspecto melancólico e passivo que me granjeou a consideração de santo.

     Em minha consciência não protesto contra aquela consideração, porque alguma coisa de real nela existia, que me valeu a tempo.

     Nunca soube protestar nem maldizer. Sentia-me morrer na morte das ilusões e esperanças que tive, como têm todos na infância. Parecia que a fatalidade invencível pesava sobre o meu organismo moral, a esmagar-me, sem esperança de alívio; mas tudo isso não me impelia à raiva nem à blasfêmia. Intimamente sentia bem que Deus existia. Que eu não podia ter nascido só para vítima do atroz sofrimento em que era dilacerado; e que alguma coisa mais do que aquilo que os homens conheciam haveria para além desse mundo, onde me supunha enteado. Essa crença mais me desvairava a razão, por não compreender como sofria tanto sem achar em mim justificação para isso; e, sem ideia blasfema ou irreverente, nos largos momentos de meditação, admirava-me de que o Deus em que cria, e que acreditava de bondade, de justiça e de amor, me deixasse só, entregue ao meu desespero e à minha angústia, sem vir em meu socorro, reanimando as esperanças que caíam, fortalecendo ou substituindo a saúde que desaparecia. E queria, no meu cérebro finito e que alguns centímetros medem e alguns gramas pesam, compreender e julgar o infinito, o incomensurável!

     O não ter encontrado nunca a mais racional solução para este problema, não me derrubou da minha íntima crença espiritual, tanto mais mística e serena quanto mais me aproximava do fim, que a tentação fazia antever, à minha ânsia de liberdade; mas aproximava-me mais deste fim, não sei bem se pelo desejo de conhecer o "depois", se pelo anseio de lhe pôr termo, confiado em que a vida, que esperava ver surgir, me compensaria.

     À proporção que ia afrouxando na resistência, ia-me familiarizando com a ideia da morte; e esta familiaridade concluía por achar coisa natural que, não vindo ela buscar-me, eu fosse em sua procura. Alguns rebates de medo pelas consequências, que me faziam, às vezes, estremecer a consciência, foram desaparecendo,  ou pelo menos, foram diminuindo de valor, pelo hábito de os sentir. Não compreendia, confesso, esses rebates, ante a sorridente esperança, única que tinha, da libertação pela morte; como, às vezes, me surpreendia também, sem grande motivo próximo, em grave aflição, num grande desejo de morrer e num deliberado propósito de suicidar-me.

     Essa surpresa e essa descoberta, lançavam, sem eu saber, os clarões que eu desprezava!

     Achava estranho que isso sucedesse em momentos em que tinha de me confessar mais livre de motivos reais de sofrimento; como achava igualmente estranho que nas ocasiões mais torturantes, e em que o suicídio devia vir como derradeiro libertador, fosse quando sentia mais vivos, e mais intensamente, os rebates de horror por esse suicídio.

     Na minha ânsia de explicar tudo, de profundar tudo, eu buscava logo as razões desses fatos; e dava-me por satisfeito ao reconhecer que, no primeiro caso, devia ser a minha dor que acordava de um adormecimento passageiro e distraído; e no segundo era o instinto da conservação ao reagir contra a ideia da morte. Procurava sempre a causal de tudo exclusivamente em mim. A minha educação positiva, o modo de ser para mim, por mim próprio criado, reagiam contra a ideia possível e por outros preconizada, de que alguma coisa poderia de fora influir em nós. Se pudesse ou devesse vir, teria vindo, fatalmente, o auxílio de Deus, tanta vez pedido para beneficiar-me, nos momentos em que me sentia livre de culpa e quase cria sem razão o meu martírio.

     Logo que esse auxílio não vinha da única fonte que tinha poder para mo ministrar, nada mais podia servir de agente exterior para acionar os nossos sentimentos íntimos. Era este o derradeiro argumento com que o meu positivismo adquirido e sistemático vencia a sentimentalidade e a crença modestíssima, nascidas e vindas da minha infância, e acalentadas na minha idiossincrasia de triste.

     Assim, mal aparelhado para a resistência, tinha de cair, como caí. A minha concentração natural avolumava, no meu íntimo, as causas apreciáveis de desgosto, e impedia que aqueles que me cercavam pudessem influir na sua destruição. Procurava ocultar de todos o meu desígnio como um avaro procura ocultar o seu tesouro.

     Receava que mo arrancassem pela persuasão!

     Enquanto poderia desejar que a persuasão e a lógica me destruíssem o desígnio do suicídio, não tomava este bastantemente a sério, nem o sentia tão próximo, que pudesse ou devesse manifestar a alguém tão condenável e desarrazoado propósito; quando o tomei a sério bastantemente, para o considerar como coisa deliberada, esta mesma deliberação impedia que eu pudesse manifestá-lo, com receio de que mo obstassem.

     Era o sentir-me bem na torrente maldita que me levaria ao despenhadeiro, em vez de lutar pela vida, agarrando-me aos ramos, na aflição desesperada que leva um náufrago a agarrar-se a uma navalha de barba, se lha estenderem!

     Vencido, aniquilado, tomado da máxima covardia, cedi.

     E dizem, às vezes, que o suicídio não é uma covardia!

     O que faz quem se suicida?

     Foge. O que é quem foge? É um covarde. E não se diga que para buscar a morte é preciso coragem. Não. A morte, que se busca pelo suicídio, não é a morte, é a libertação de um sofrimento que nos tortura, e a que não temos forças para resistir; é a fuga de uma luta a que não sabemos ser superiores, ou que não temos a energia para sustentar.

     O suicida não procura a morte a sangue frio, para se entregar a ela; procura-a como um bem; quere-a como a um refúgio, a um prazer.

     Não a teme, estima-a. É o local onde supõe esconder-se de um inimigo que o persegue, e a que se não sente com valor para fazer frente; é o sítio roto e sem vigilância por onde supõe evadir-se de um lugar, que crê intolerável prisão. Na sua ação não há um átomo de valor: há o egoísmo mais condenável; o abandono do seu posto na peleja, o esquecimento dos sentimentos de brio que o deviam animar na solidariedade da vida para com os outros, e o desprezo dos sentimentos de interesse que essa mesma solidariedade levou outros a prodigalizarem-lhe. É uma completa defecção moral e material. É a confissão absoluta e eterna da covardia, da sua inópia, da sua pusilanimidade, e do seu desrespeito a Deus, que lhe deu essa vida, e a todas as noções de pundonor e de coragem, que o deveriam levar a manter intacto um depósito, que lhe fizeram, e a conservar um lugar que lhe destinaram.

     Suprema fraqueza, suprema covardia!

     Eu cedi a essa covardia. Tenho que expiá-la..

     Compreendi, então já tarde, a razão dos rebates da consciência contra o suicídio, e daqueles solilóquios fúnebres em que me surpreendia, enaltecendo a ideia de suicidar-me, como que prelibando o prazer que pela morte me viria.

     Era que a tentação demoníaca da lenda não é uma palavra vã, nem o amparo do anjo da guarda é pura ficção de velhas beatas e de dogmas religiosos.

     O demônio da tentação é que pode não ser a lendária figura da Idade Média, mas criaturas perversas, filhas de Deus como eu e tu, vivendo no mal e do mal agentes, que vêm pôr à prova a nossa constância, a nossa firmeza, a nossa fé; e os pretensos anjos da guarda, aquelas santas individualidades que souberam resistir à tentação, conformar-se na adversidade e praticar e amar o bem, que, ao ver-nos baquear, tombar para o abismo, tentam advertir-nos ou suster-nos na queda...

     Ah! que se soubessem por que preço pagamos a libertação pelo suicídio, ninguém se suicidaria!

     Os maiores martírios da Terra são doces consolações em comparação com os mais suaves sofrimentos de um suicida!

     E é porque Deus castigue?

     Não; é porque tem de ser.

     É da lei. É fatal, como é da lei girar a Terra no seu eixo, e as estrelas na sua órbita.

     Esse sofrimento não é cego e igual. É harmônico, equitativo, justo, equitativo e harmônico tudo que obedece à lei imutável do Universo, que Deus firmou com a sua vontade e perfeição.

     E nós, aí na Terra, a querermos apreciar com a nossa inteligência microscópica a grandeza do infinito!

     É querermos iluminar o mundo, na treva de uma noite, com a luz de uma lamparina!

     Avalias tu, ou alguém, o que é o infinito?

     Se avaliares, terás apreciado Deus e a sua obra.

Observação do compilador: 1 - O autor se refere a polvo ou octoplus (oito braços), que Victor Hugo incluiu em seu famoso romance Os trabalhadores do Mar, escrito em 1865 quando ele se encontrava asilado na ilha de Guernsey.                                                                                       INÍCIO

Versos de Anthero de Quental do soneto denominado:

PAZ EM DEUS

Se sentir dentro d'alma alguma f'rida
Vertendo sangue e fel, em dor extrema,
Buscarei no Senhor o meu alivio:
E o Senhor, pondo um dedo sobre a chaga,
Dirá—«Fica-te em paz: estás curado»—!

"Não sejais escandalosos"

A Divina Comédia - inferno - Dante Alignieri - gravura de Gustave Doré