Pintura em azulejos, Lisboa, Portugal. Foto iap

 

ABNEGAÇÃO E BONDADE

(Comunicação do Espírito Alexandre Herculano - Médium: Fernando de Lacerda - Obra: Do País da Luz, volume 2)

Obs.: O título deste artigo é criação do compilador, segundo o sentido principal comentado.

ALEXANDRE HERCULANO - "É um dos maiores nomes da literatura portuguesa. Poeta severo, historiador moderno e insigne jornalista e polemista de respeito foi, igualmente, caráter de rija têmpora. O seu nome enobrece uma literatura e um povo".  

    

     Por favor do Eça, que me cedeu o lugar, vou falar-te novamente.

     Ficaste satisfeito quando hoje alguém te referiu que a comunicação, como minha publicada, tinha realmente o meu estilo.

     Ainda te restavam dúvidas, apesar dos fatos que se deram, e que deviam ser o bastante para garantir-te a genuinidade e a autenticidade dela.

     Se isso assim é contigo próprio, como poderás estranhar que aqueles que te não conhecem e que ainda menos conhecem a possibilidade da nossa manifestação post mortem, tenham dúvidas, discutam, e te apreciem mal?

     Não descoroçoes,(1) por isso.

     Não te desvies da linha de tolerância que adotaste. Dá a todos liberdade plena, para apreciarem, como lhes aprouver, o fato.

     Ninguém pode contestá-lo, pois que ele existe.

     Tu e os que te conhecem de perto, afirmam a tua estranheza a ele. Ora, sendo tu e os que te conhecem as únicas autoridades a acatar, aqueles que não aceitarem como digna de crédito a hipótese de sermos nós que escrevemos o que como nosso aparece escrito, que busquem a hipótese mais verossímil e aceitável.

     Creio que não será necessário encorajar-te para a luta, se luta houver; mas nos prováveis momentos de possível fraqueza e hesitação, recorda-te que todos nós te agradecemos o sacrifício; que as críticas dos zoilos(2) ou dos ignorantes passam e que a tua obra fica; e que, acima de tudo, tu darás ao homem uma prova grandiosa da sua imortalidade, e uma luz firme e serena, com que ele possa guiar-se na investigação da verdade, sobre o eterno problema da sua existência e da sua missão na Terra.

     Não lhe dás, nem nós lhe trazemos, ideia nenhuma nova. Outros, antes de nós, com mais brilho e simplicidade, lhe vieram mostrar a rota por onde os navegadores audazes poderiam ir à conquista do velocino(3) de ouro; mas alguma coisa faremos com o virmos,(4) com a nossa idiossincrasia,(5) com o nosso modo de ver e de dizer, demonstrar aos tíbios(6) e aos bons a nossa real existência; e aos outros dar-lhes o grito de alarme, que os ponha de atalaia(6A) contra perigos, que a materialidade e a ignorância lhes não deixarão ver.

     A missão do homem na Terra é infinitamente superior àquela que as teorias materialistas lhe assinalam e demarcam.

     A sua estada efêmera nesse mundo, corresponde a ligeiras migrações a uma região de trabalho e de aperfeiçoamento. É como uma comissão de estudo em colônia escolar.

     Aquele que empregue o seu tempo e as suas faculdades em adquirir e assimilar o que de bom e útil lhe ensinem, depressa se libertará da situação subalternizada de estudante, passando a outras regiões, onde colherá o fruto do seu trabalho e cansaço. Os que protelarem a sua aprendizagem, porém, insubmissos, rebeldes à disciplina e ao estudo, persistirão, em migrações sucessivas e dolorosas, no triste estado do eterno e incorrigível cábula.(7)

     O reconhecimento dessa verdade há de levar o homem a querer saber qual o modo de progredir para se libertar do jugo que o prende a mundo de tão pouco conforto e carinho; e as suas pesquisas, nesta orientação, hão de conduzi-lo à certeza de que só na abnegação(8) e na bondade encontrarão o que necessitam.

     Abnegação e bondade, são, talvez, ideias abstratas e confusas, em uma época de revolta, em que se prega o orgulho e a dignificação, e talvez a divinização da individualidade humana; mas eu prefiro empregá-las, a empregar as suas equivalentes modernas de solidariedade e fraternidade. São mais do meu tempo, e dizem mais.

     Conheço melhor a abnegação e a bondade. A solidariedade e a fraternidade são mais para se dizerem do que para se fazerem. Ordem de específicos(9) secretos de charlatão de praça pública, que os tem só para os outros tomarem.

     Quando mesmo na prática, aquelas duas modernas virtudes sociais fossem exequíveis e executadas, elas só fariam homens; enquanto que a abnegação e a bondade são de execução imemoriável, e de entre os homens fazem os santos.

     A solidariedade pode levar-nos a darmos um pouco do que possuímos. O que damos pela solidariedade pode trazer-nos a satisfação de cumprirmos um dever; mas o que fazemos pela abnegação dá-nos a certeza de que fazemos mais do que cumprir esse dever. Quem cumpre um dever, está quite consigo e com os outros; o que faz mais do que cumprir esse dever, fica quite com o que a si deve e fica em crédito à comunidade.

     Como tudo nesse mundo se pode desvirtuar, dirão que a abnegação é uma manifestação egoísta, porque constitui um memorial à Bem-aventurança futura e à subserviência do agradecimento presente; enquanto que a solidariedade é uma troca mútua de serviços e de interesses entre pessoas da mesma coletividade.

     Será assim; mas aqueles prestarão a sua coadjuvação só na mira de uma hipotética recompensa, quanto ao agradecimento, e de uma ignorada mercê, quanto a bem-aventurança; e estes, o que fazem, é na certeza de que os outros lhes deem logo equivalentes compensações.

     Quais são os mais egoístas?

     É vulgar ouvir-se aos propagandistas das ideias irreligiosas, que os crentes praticam o bem na esperança de que ele lhes aproveite. Haverá mais justo egoísmo do que este?

     Porque é que toda gente trabalha, se afadiga e sacrifica? Não é na esperança de que daí lhe venha benefício?

     Que santo egoísmo o que nos obriga a corrigirmos os nossos defeitos e a perdoarmos os alheios; a privarmo-nos do que possuímos e a não exigirmos nada do que os outros possuem; a semearmos as ações boas sem cuidar de quem lhes colherá o fruto!

     Há alguma coisa no mundo de que não possa maldizer-se?

     Não.

     Da luz que ilumina dirá o maldizente(10) que queima e destrói; do sol que aquece e dá vida, dirá que estiola e resseca; da água que dá alimento e seiva, dirá que alaga e arrasa; do amor que felicita e perpetua a espécie, dirá que corrompe e faz  viciosos e enfermiços; da caridade que acaricia e consola, dirá que faz inúteis e humildes; da humildade que acomoda e submete, dirá que faz subservientes e servis; da fé que fortalece e faz prodígios, dirá que faz obcecados e sectários.

     Não há, na vida terrena, coisa que se não possa apreciar por faces múltiplas e variadas. A fortuna, para o homem, consiste em ver claro no meio de tão desencontradas maneiras de apreciar. É na conquista dessa clarividência que cada um deve empregar os seus melhores esforços, sem querer saber o que pensarão os outros.

     Ora tu e nós pomos diante do homem o fogacho que o conduzirá à terra da Promissão, como a estrela de Nazaré conduziu à gruta de Belém os magos do oriente.

     A multidão duvida e ri?

     Deixa que o faça livremente.

     Reconhece-lhe o direito que para ti exiges; e crê que, dentro dela, a muitos levaremos a crença e a força.

     E que não levemos? Cumpre que façamos pelo exemplo o que fizemos pela palavra. Sejamos abnegados, atiremos com a boa semente ao ar, espalhemo-la, que, quando Deus quer, até sobre as rochas áridas e escalvadas(11) nasce e frutifica.

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OBSERVAÇÕES DO COMPILADOR: 1= Não te lances nem caias no desânimo; 2= Crítico que agride e que revela inveja, incompetência e aversão pessoal; 3= Da mitologia; carneiro fabuloso com velo de ouro (lã do carneiro, da ovelha ou do cordeiro); 4= Em duas situações essa palavra ocorre em nossa língua: verbo ver no Futuro do subjuntivo: quando nós virmos; verbo vir no Infinitivo flexionado: virmos nós; 5= Característica de comportamento; 6= Fortes, valentes; 6A= sentinela, o que vigia; 7= Falta de aplicação nos estudos; artifício para escapar do trabalho; 8= Ação de desprendimento, de superação das tendências egoístas em benefício de pessoas, causas ou princípios; dedicação extrema; altruísmo; 9= Medicamentos para determinadas doenças; 10= Que fala mal dos outros, que difama; 11= Sem vegetação.

NOTA: A Obra "Do País da Luz" em 4 volumes foi recebida pelo médium Fernando de Lacerda no início do século 20; nela estão mensagens de dezenas de expoentes Espíritos, personalidades cultas e famosas. Na presente podemos constatar que esses Espíritos haviam se reunido e combinado o dia que cada um deles iria transmitir sua mensagem através do médium. O fato mostra que não é o médium que define o seu trabalho, mas sim, o Plano Espiritual. Dizemos isso porque no início do texto acima o Espírito alega que seria o momento de Eça de Queirós transmitir o seu pensamento, mas por motivo que desconhecemos, Eça cedeu o seu lugar para Herculano.

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