A VIDA

(Tópico da Obra: A Evolução Anímica escrita em 1895 por  Gabriel Delanne).

      Dos estudos parcialmente feitos neste capítulo, resulta que, consoante a frase enérgica dos teólogos, é a alma que condiciona o corpo, isto é, que o modela sob um plano preconcebido, tanto quanto o dirige por meio do perispírito.

     A forma humana, ressalvadas as alterações próprias da idade, conserva o seu tipo, apesar do afluxo incessante de matéria que passa pelo corpo. Destarte, assemelha-se a uma rede, entre cujas malhas se insinuam as moléculas. Esse retículo fluídico contém, igualmente, as leis do mecanismo vital, e fica estável através do turbilhão das ações físico-químicas, que destroem e reconstroem, incessantemente, o edifício orgânico.

     Compõe-se, portanto, o ser humano de três elementos distintos: a alma com o seu perispírito, a força vital e a matéria

     A força vital representa aqui um duplo papel: dá ao protoplasma suas propriedades gerais, e ao perispírito o grau de materialidade necessária para que ele possa manifestar as leis que oculta, enfim, fazendo-as passar da virtualidade ao ato.

     A grande autoridade de Claude Bernard, a quem consultamos muitas vezes, vem, ainda neste ponto, confirmar a nossa forma de ver. Eis como ele se exprime em seu livro - Investigações sobre os problemas da Fisiologia:

     "Há - diz - como que um desenho vital, que traça o plano de cada ser e de cada órgão; de sorte que, considerado isoladamente, cada fenômeno orgânico é tributário das forças  gerais da natureza, a revelarem como que um laço especial, parecendo dirigidos por alguma condição invisível na rota que perseguem, na ordem que as encadeia.

     "Assim é que as ações químico-sintéticas da organização e da nutrição se manifestam como se fossem animadas por uma força impulsiva governando a matéria; fazendo uma química apropriada a um fim, e pondo em jogo, os reativos cegos dos laboratórios, à maneira dos próprios químicos.

     "É essa potência de evolução, imanente no óvulo, que nos limitamos a enunciar aqui, que constituiria, só por si, o quid(4) próprio da vida; pois é claro que essa propriedade do ovo, a produzir um mamífero, uma ave, ou um peixe, não é nem física, nem química."

     A vida resulta, portanto, evidentemente da união da força vital com o perispírito, dando aquela a vida, propriamente dita, e este as leis orgânicas, concorrendo a alma com a vida psíquica.

     Destes três fatores, só um é sempre e por toda parte idêntico - a vida. O Espírito, transitando pela matéria vivente, desde as primitivas eras do mundo, conseguiu, paulatinamente, a transformação progressiva e aperfeiçoada. Cremos seja ele o agente de evolução das formas orgânicas e, daí, a razão do perispírito, conservando-lhe as leis. Nem foi senão lentíssima e progressivamente que essas leis se lhe incrustaram na contextura.

     Havemos de ver de que modo um movimento, voluntário de início, pode tornar-se habitual, maquinal, e, por fim, automático e inconsciente... Este o lado fisiológico. A mesma coisa ocorre com as manifestações intelectuais, dado o paralelismo das duas evoluções. É difícil, em primeiro lugar, representarmos uma matéria fluídica, invisível, imponderável, agindo sobre a matéria, para ordená-la mediante leis; nada obstante, podemos encontrar analogias que permitem fazer uma ideia, assaz aproximada, dessa espécie de ação.

     Conhecemos em física um instrumento chamado eletroímã, que nos vai servir de comparação. Compõe-se ele, principalmente, de um cilindro de ferro destemperado e dobrado em forma de ferradura, à volta do que se enrola, à direita e à esquerda dos respectivos ramos, um longo fio de cobre isolado. Às extremidades de ferro chamamos polos do eletroímã.

     Fazendo passar uma corrente elétrica no fio de cobre, o ferro se imanta e conserva essa propriedade por tanto tempo quanto dure a ação elétrica. Se voltarmos o aparelho de modo a ficarem os polos no ar, colocando por cima um cartão delgado e polvilhado com limalha de ferro, veremos que esta se ordena espontaneamente em linhas regulares, a formar desenhos variáveis e correspondentes à forma dos polos. A essas figuras deu-se o nome de fantasma ou espectro magnético, e às aglomerações de limalha chamou-se linhas de força, por isso que traduzem objetivamente a ação das forças magnéticas.

     Temos, assim, um exemplo material do que ocorre com todo ser animado.

     Uma força invisível, imponderável - o magnetismo -, agindo sem contato sobre a matéria - a limalha. Em nosso exemplo, a eletricidade representa o papel da força vital, o eletroímã o do perispírito, e a limalha representa as moléculas componentes dos tecidos orgânicos.

     Podem formar-se no ímã polos secundários, chamados pontos consequentes, de sorte que também eles produzem espectros secundários, que, misturando-se aos primeiros, originam as mais complicadas figuras.

     O magnetismo é bem uma força imponderável, pois que um ímã capaz de elevar um peso vinte e três vezes maior que o seu, nem por isso pesa mais do que antes de ser imantado. Comparando-se a ação do perispírito sobre a matéria à do eletroímã sobre a limalha, podemos faze um ideia do seu modo operatório. Concebe-se que lhe seja possível modelar a substância do ser embrionário, de feição a imprimir-lhe a forma exterior, fadada ao tipo específico, ao mesmo tempo que facetar os órgãos interiores: - pulmões, coração, fígado, cérebro, etc., propiciados ás funções vitais.

     O espectro magnético não forma senão um desenho no cartão, desenho que figura um agregado feito na esfera da influência magnética; entretanto, se pudéssemos dispor, em torno dos polos e em forma de leque, uma série de cartões, veríamos o espectro magnético a estender-se e a formar um campo magnético em todas as direções. É o que se dá com o perispírito, com a só diferença de serem internas as suas linhas de força, ou, por melhor comparar: - o corpo físico é o espectro magnético do perispírito.

     São simples os desenhos formados pelos polos do eletroímã, porque simples é o movimento molecular do ferro. No envoltório fluídico, esse movimento é muito complexo, e, daí, uma grande diversidade nos seres vivos. Da mesma forma que a ação magnética se mantém enquanto a corrente elétrica circula no fio de cobre, mantém-se vivo o corpo enquanto haja força vital animando o perispírito.

     Podemos levar ainda mais longe a analogia. As propriedades magnéticas do ferro brando permanecem latentes, enquanto a eletricidade não as desperta, orientando as moléculas metálicas.

     Assim dormitam, também, as propriedades organogênicas do perispírito, por assim dizer, enquanto a alma pervaga no espaço, e não se tornam ativas senão sob a influência da força vital. A razão aí está de poderem os Espíritos, em suas manifestações, reconstituir um corpo temporário, acionando o mecanismo perispiritual, desde que um médium lhes forneça a força vital e a matéria indispensáveis a essa operação.

     Temos, em suma, que uma força imponderável - a eletricidade - determina, por indução, o nascimento de outra força imponderável - o magnetismo -, que tem ação diretiva sobre a matéria bruta. No ser vivente, a força vital age sobre o perispírito e este pode, então, desenvolver suas propriedades, que são, qual o vimos, a formação e reparação do corpo físico.

     Como o perispírito é matéria, tem forma bem determinada e é indestrutível, podemos conceber-lhe modificações sucessivas de movimento atômico, correspondendo a modificações e complicações cada vez maiores no seu modus operandi. Por outras palavras, vale dizer que, começando por organizar formas rudimentaríssimas, pôde, após longa evolução de milhões de anos e de inumeráveis reencarnações, dirigir organismos mais e mais delicados e aperfeiçoados, até chegar aos humanos. Alma e perispírito formam um todo indivisível, constituindo, no conjunto, as partes ativa e passiva, as duas fazes do princípio pensante. O invólucro é a parte material, a que tem por função reter todos os estados de consciência, de sensibilidade ou de vontade; é o reservatório de todos os conhecimentos, e, como nada se perde na natureza, sendo o invólucro indestrutível, a alma tem memória integral quando se encontra no espaço.

     O perispírito é a ideia diretora, o plano imponderável da estrutura orgânica. É ele que armazena, registra, conserva todas as percepções, todas as volições e ideias da alma. E não somente incrusta na substância todos os estados anímicos determinados pelo mundo exterior, como se constitui a testemunha imutável, o detentor indefectível dos mais fugidios pensamentos, dos sonhos apenas entrevistos e formulados.

     É, enfim, o guardião fiel, o acervo imperecível do nosso passado. Em sua substância incorruptível, fixaram-se as leis do nosso desenvolvimento, tornando-o, por excelência, o conservador de nossa personalidade, por isso que nele é que reside a memória.

     A alma jamais abandona o invólucro, sua túnica de Nesso(1), mas bálsamo consolador também.

     Desde períodos multimilenar em que a alma iniciou as peregrinações terrestres, sob as formas mais ínfimas da criação, até elevar-se gradativamente às mais perfeitas, o perispírito não cessou de assimilar, por maneira indelével, as leis que regem a matéria, pois à medida que o progresso se realiza as criações multifárias(2) do pensamento formam bagagem crescente, qual tesouro incessantemente abastecido. Nada se destrói, tudo se acumula nesse perispírito tão imperecível e incorruptível como a força ou a matéria de que saiu. Os espetáculos maravilhosos que nossa alma contempla, as harmonias sublimes que se dilatam nos espaços infinitos, os esplendores da arte, tudo fixou-se em nós, e nós para sempre possuímos o que pudemos adquirir. O mínimo esforço é levado mecanicamente ao nosso ativo, nada se perde, e assim é que lenta, mas seguramente, galgamos a escada do progresso.

     Com a morte do homem, quando o despojo mortal se lhe decompõe; quando os elementos que o conformaram entram no laboratório universal, a alma subsiste integral, completa, conservando o que fez sua personalidade, isto é, a memória, e, o que mais é: - não apenas a da última encarnação, mas a de todas as que tenha experimentado.

     Panorama imponente e severo que se lhe desenrola à vista, no qual ela pode ler os ensinamentos do passado e discernir os deveres do futuro.

     Agora, queremos estabelecer como pôde o perispírito adquirir as suas propriedades funcionais, passando e repassando em sucessivas reencarnações pelo tamis(3) da animalidade.

     Preciso é, portanto, demonstrarmos a unidade do princípio pensante no homem e no animal, e estabelecermos que não há transições bruscas entre um e outro; que a lei de continuidade não se interrompe, que o homem não constitui um reino à parte no seio da natureza, e que só mediante uma evolução contínua, por esforços consecutivos, chega a atingir o ponto culminante na criação.

PRÓXIMA                                                                                                  INÍCIO

OBSERVAÇÕES DO COMPILADOR: 1) Nesso= (Mitologia grega) - Centauro que, tendo querido raptar Dejanira, mulher de Hércules, foi por este ferido com uma flecha envenenada pelo sangue da hidra de Lerna. Antes de morrer, Nesso deu sua túnica a Dejanira como um talismã que deveria restituir-lhe o marido se ele se tornasse infiel. Hércules, quando a vestiu, sentiu dores tão violentas que, desesperado, atirou-se numa pira no monte Eta, deixando-se consumir pelo fogo. 2) Multifárias= que pode ser de várias espécies ou que se apresenta sob diversos aspectos; multiforme; multimodo. 3) Tamis= Peneira ordinariamente de seda, em geral de uso farmacêutico, na qual se passam matérias pulverulentas (estado de pó; poeira) ou líquidos densos. 4) Quid= essência.