Casa que foi de Leon Tolstoi em Iasnaya Poliana, Rússia - Foto www.wikipedia.org/

A SIMPLICIDADE

(Comunicação do Espírito Leão Tolstoi - Obra: Do País da Luz - volume 4 - Médium: Fernando de Lacerda).

     É bem cego o homem que nesse mundo supõe ver alguma coisa além do dia em que se encontra.

     Não pode o homem contar com o minuto que se segue àquele em que pensa ser senhor do seu juízo e senhor de sua vontade; e, apesar de ser uma verdade sem discussão esta afirmativa, o homem forma projeto, como se fosse o senhor do tempo e o senhor dos acontecimentos.

     Nem a ambição nem a vaidade deixam que ele contenha as suas aspirações dentro do limite razoável. Excede sempre esse limite, caminha por trilhos que devia considerar vedados e faz obra que devia, prudentemente, legar aos que viessem em seu seguimento.

     O que o homem julga ser a sua força é a sua fraqueza. Se ele se restringisse à cruz de cada dia, não seria pelo peso dela que deixaria de caminhar firme pela estrada que tem de percorrer até chegar à morte; mas não pensa assim o homem. As preocupações do dia de hoje só tiveram valor para ele até ao dia de ontem. As que hoje dominam nem já são as de amanhã: são as de sempre.

     Supõe ele um dever seu cuidar hoje das coisas que hão de aproveitar aos que ainda hão de vir amanhã, sem se lembrar que estes o podem maldizer pela obra que lhes preparou. Não tem o homem o dom da previsão e, não sabendo o que é bom para hoje, como pode querer saber o que será bom para amanhã, dia a que ele já não pertencerá? Procedendo assim, exerce uma tirania. Impõe a sua vontade em um campo que lhe não pertence e quer escravizar as vontades e as consciências que ainda se hão de formar ao juízo que ele hoje forma do que hão de vir a ser o futuro.

     Proclama-se todos os dias a liberdade, para, em nome dela, exercer-se o despotismo. Os déspotas liberais sentem a necessidade de dizer bem alto que amam a liberdade, para imporem aos outros a obrigação de lha respeitarem e acatarem, e, em nome da liberdade que para si exigem, usufruem o direito de coarctar a liberdade alheia.

     Outrora, os déspotas criam que tudo lhes era devido, porque suas funções de déspotas lhes davam ocasião de fazer o que às suas vontades aprouvesse. Hoje, quase não há autocratas, mas os que têm a liberdade na boca, a consideram um talismã para com ele fazerem o que lhes apraz. E é para procederem assim que querem a liberdade.

     Em verdade vos afirmo, agora, que os autocratas de minha pátria estão mais escravizados do que os escravos para quem se fez a liberdade. Estes podem dormir ao sol de Deus, podem correr, andar, saltar, livres como os cabritos, que ninguém quererá saber contas da sua vida; os outros nem para o ar são livres e nem de pensar são livres. São escravos da liberdade alheia, como são escravos das vontades dos outros.

     A liberdade, a meu ver, deve ser uma regrada combinação de costumes, que permita que cada pessoa possa fazer o que for justo, sem prejudicar a ninguém. Quando, com a liberdade, se prejudica injustamente a outrem, comete-se tirania.

     A lei deve ser a metódica e regrada combinação dos bons costumes de uma sociedade. Deve servir para regularizar os fatos, os interesses e os acontecimentos que diariamente se dão, e prevenir providencialmente os choques que, pela natural luta de egoísmos, se possam dar em detrimento do que é justo.

     As leis não devem servir para sujeitar os povos. Quando sujeitam, tiranizam. Devem servir para os encaminhar e guiar. Só devem servir de sujeição àqueles que, querendo atacar os interesses legítimos da coletividade, pretendem sair do limite razoável.

     Este limite, visto que é razoável, tem de ser móvel e progressivo. O que ontem foi razoável não será hoje e menos o será amanhã.

     A razão deve caminhar ao lado do progresso. Quem contrariar o progresso comete tirania. O progresso é uma lei natural a que está sujeito o homem, tanto nos seus pensamentos, como nos seus afetos e nos seus meios de vida.

     Os pensamentos e os atos dos homens devem tender sempre a elevar-se para a Perfeição, como as grandes e as pequenas plantas tendem sempre a elevar-se para o Sol. O homem, que encaminha seus pensamentos e seus atos para o mal, é como a árvore que derruba suas hastes para a terra, de onde saiu. A perfeição do homem está em aumentar gradualmente a ação do seu espírito sobre a sua matéria. O espírito deve suplantar em tudo a carne. Quando a carne suplanta o espírito, a animalidade ganhou uma vitória contra o ideal.

     Deve o homem procurar despojar-se de tudo que constitua prazer da sua condição animal. Deve satisfazer moderadamente a todas as suas funções naturais. Alimentar-se sobriamente e só o indispensável para manter em si as forças da vida orgânica; exercer o ato da procriação no limite mínimo que a sua organização física exija. A exigência mínima está sempre de acordo com a elevação espiritual de cada homem.

     Deve abster-se do supérfluo em tudo: - na alimentação como no vestir, no gozo como na alegria, na ostentação da virtude como na prática do vício.

     Não aconselho agora a que de tudo se privem. Reconheço que tudo tem a sua necessidade de existir; e cada coisa representa uma satisfação a essa necessidade. Tudo tem uma função determinada e, portanto, tem de desempenhar oportunamente essa função. A virtude de cada ato está em ele corresponder ao momento em que é preciso.

     Será louco quem queira contrariar aí os atos naturais quando eles apareçam a corresponder à necessidade que os exige. Comete uma tirania inútil e vã. Para conservar a cabeça sã e o corpo são deve o homem alimentar frugalmente o seu cérebro e o seu estômago. Deve dar, a cada um, alimento sadio e que ele possa digerir sem esforço.

     Pela educação, pode o homem habituá-los a digerir as coisas mais indigestas ou mais intoleráveis; mas, para chegar a ingerir veneno puro, é necessário que este comece por aparecer levissimamente  no que ele houver de tomar.

     Em tudo se deve seguir o método natural: - começar a educação pelas manifestações mais simples... Ninguém, com são juízo, daria, na primeira lição de escultura, um Moisés ao discípulo para imitar. Assim, pois, em tudo que haja para ser educado se deve começar a educação pelo cultivo do terreno. Terra sáfara(1) pode chegar a ser jardim, se a prepararem; assim como mimoso jardim se volverá em árida charneca, se o descurarem.

     O homem não deve educar só o seu cérebro: deve educar o seu coração, o seu estômago e todos os seus membros úteis para que nenhuma das suas faculdades claudique em relação às outras.

     A melhor educação deverá ser a mais simples, relativamente às exigências da vida. O cérebro eduque-se para pensar bem e claramente; o coração, para funcionar com regularidade e sentir com pureza e bondade; o estômago para digerir com regularidade e sem esforço; as pernas, para andarem bem e sem cansaço; as mãos para serem ágeis e hábeis; enfim, tudo para atingir, com o dispêndio do menor esforço, a perfeição máxima de que é suscetível.

     Em tudo se consegue essa perfeição; mas é necessário considerar sempre que ela é o fim a atingir e não o princípio a começar.

     Tem o homem três órgãos essenciais à sua vida, de delicadas funções: - o cérebro, o coração e o estômago. Deve poupá-los. Não deve dar-lhes sensações pesadas, nem bruscas, que os cansem. Todos três são de natureza elástica, física ou moralmente. Não lhes deve forçar a expansibilidade, porque lhes hipertrofia doentiamente a organização. Deve cuidá-los, como um caçador cuida a sua melhor arma, para que no momento próprio lhe não negue fogo. Deve trazê-los sempre muito leves. Carregando-os muito, redu-los ao estado de jiboia saciada.

     A vida aí é coisa fácil de levar, desde que cada homem, ao viver nela, procure pôr em todos os seus atos o cunho da simplicidade. Em tudo a simplicidade: - no pensar, no comer, no vestir, no amor e no proceder. Na simplicidade está a pureza.

     O claro entendimento é a simplicidade no juízo; a frugalidade é a simplicidade no comer; a modéstia é a simplicidade no trajar; a pureza e a moderação são a simplicidade no amor; a verdade, a honradez e a franqueza são a simplicidade no proceder.

     Só na simplicidade está a grandeza de tudo. As coisas não são verdadeiramente grandes, senão quando, pela sua simplicidade, dão a rápida impressão de que todos as podem fazer, dando assim subitamente a noção máxima da sua mais fácil compreensão.

     A simplicidade é a lei natural de tudo. O que sair fora dessa lei exige esforço e dispêndio de energia. Que se empregue esse esforço e se despenda essa energia somente na medida necessária para se atingir o fim necessário, na sua correspondência à maior simplicidade. Tudo que for além é o desbarato, o supérfluo e, portanto, a perda de forças.

     Na simplicidade está o justo equilíbrio de tudo. Desconfiar sempre do que não seja simples. O artifício e o exagero servem só para encobrir faltas ou defeitos.

     E como assim é, o homem deve encaminhar todo o seu querer a atingir a perfeição pela simplicidade.

     Nos seus atos para com Deus, deve ser simples. Pense sempre que não há artifício que lhos esconda ou transforme.

     Nos seus atos para com os outros homens, deve ser simples. Pense sempre que não há artifício que os esconda à sua consciência. Quando esta lhos rejeitar, o menos que poderá suceder é tê-los praticado inutilmente e em pura perda; daí em diante podem chegar até a constituir doloroso fardo para toda a vida.

     Nos seus atos para consigo próprio, deve ser simples. Pense sempre que a sua razão equilibrada lhe desaprovará todos aqueles que forem supérfluos ou exagerados e que o seu organismo ou a sua vida individual se hão de ressentir de tudo que constitui sobrecarga à sua exigência normal.

     No hábito, como no pensar; no alimento, como no afeto; no gozo, como na ambição; no lar, como no templo; na família, como na sociedade; nas funções de cidadão, como nas de homem, ponha em tudo a simplicidade.

     A simplicidade assim será a parcimônia, será o necessário, será o cumprimento do dever.

     Quem for simples será generoso, será bom, será digno. Servirá bem a si, ao próximo e a Deus.

Nota do compilador: 1 - Terra sáfara= terra estéril, infecunda, árida.

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