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A MÚSICA E AS HARMONIAS CELESTES II

(Comunicação do Espírito Rossini - 17/1/1869 - Revista Espírita de 1869).

     Oh! comparação! Comparação! Por que se é obrigado a empregar-te? Por que dobrar-se às tuas necessidades degradantes e tomar à natureza tangível imagens grosseiras para fazer conceber a sublime harmonia em que se deleita o Espírito? E ainda, a despeito das comparações, não se pode dar a compreender essa abstração, que é um sentimento, quando ela é causa, e uma sensação quando se torna um efeito?

     O Espírito que tem o sentimento da harmonia é como o que tem a quitação intelectual; um e outro gozam constantemente da propriedade inalienável que conquistaram. O Espírito inteligente, que ensina sua ciência aos que ignoram, experimenta a felicidade de ensinar, porque sabe que torna felizes aqueles a quem instrui; o Espírito que faz ressoar no éter os acordes da harmonia que nele está, experimenta a felicidade de ver satisfeitos os que o ouvem.

     A harmonia, a ciência e a virtude são as três grandes concepções do Espírito: a primeira o deslumbra, a segunda o esclarece, a terceira o eleva. Possuídas em suas plenitudes, elas se confundem e constituem a pureza. Ó Espíritos puros que as contendes! Descei às nossas trevas e clareai a nossa marcha; mostrai-nos o caminho que tomastes, para que sigamos os vossos traços!

     E quando penso que esses Espíritos, cuja existência posso compreender, são seres finitos, átomos, em face do Senhor universal e eterno, minha razão fica confusa, pensando na grandeza de Deus e da felicidade infinita que goza em si mesmo, pelo só fato de sua pureza infinita, pois que tudo o que a criatura adquire não é senão uma parcela que emana do Criador. Ora, se a parcela chega a fascinar pela vontade, a cativar e a deslumbrar pela suavidade, a resplender pela virtude, que deve então produzir a fonte eterna e infinita de onde foi tirada? Se o Espírito, criado, chega a tirar de sua pureza tanta felicidade, que idéia se deve fazer da que o Criador tira de sua pureza absoluta? Eterno problema!

     O compositor, que concebe a harmonia e a traduz na grosseira linguagem chamada música, concretiza a idéia, escreve-a. O artista apreende a forma e toma do instrumento que lhe deve permitir exprimir a idéia. O ar posto em atividade pelo instrumento leva-a ao ouvido, que a transmite à alma do ouvinte. Mas o compositor foi impotente para exprimir inteiramente a harmonia que concebia, por falta de uma linguagem suficiente; por sua vez o executante não compreendeu toda a idéia escrita, e o instrumento indócil, de que se serve, não lhe permite traduzir tudo quanto compreendeu. O ouvido é ferido pelo ar grosseiro que o rodeia e a alma recebe, enfim, por um órgão rebelde, a horrível tradução da idéia nascida na alma do maestro. A idéia do maestro era o seu sentimento íntimo; posto que deturpada pelos agentes de instrumentação e de percepção, contudo produz sensações nos que escutam a sua tradução; essas sensações são harmonia. A música as produziu: são efeitos desta última. A música é posta a serviço do sentimento para produzir a sensação. No compositor o sentimento é a harmonia; no ouvinte a sensação também é harmonia, com a diferença de que é concebida por um e recebida pelo outro. A música é o médium da harmonia; ela a recebe e a dá, como o refletor é o médium da luz, como tu é o médium dos Espíritos. Ela a dá mais ou menos deturpada, conforme seja mais ou menos bem executada, como o refletor envia melhor ou pior a luz, conforme seja mais ou menos brilhante e polido, como o médium exprime mais ou menos os pensamentos do Espírito, conforme seja mais ou menos flexível.

     E agora que a harmonia está bem compreendida em sua significação, que se sabe que é concebida pela alma e transmitida à alma, compreender-se-á a diferença que existe entre a harmonia da terra e a do espaço.

     Entre vós tudo é grosseiro: o instrumento de tradução e o instrumento de percepção. Entre nós, tudo é sutil: vós tendes o ar, nós temos o éter; tendes o órgão que obstrui a vela; em nós a percepção é direta e nada a vela. Entre vós, o autor é traduzido; entre nós, fala sem intermediário e na linguagem que exprime todas as concepções. E entretanto, essas harmonias têm a mesma fonte, como a luz da Lua tem a mesma fonte que é do Sol; assim como a luz da Luz é reflexo da do Sol, a harmonia da Terra não passa de reflexo da harmonia do espaço.

     A harmonia é tão indefinível quanto a felicidade, o medo, a cólera: é um sentimento. Não se compreende senão quando se possui, e não se possui senão quando se adquiriu. O homem que é alegre não pode explicar sua alegria; o que é medroso não pode explicar seu medo. Podem dizer os fatos que provocam esses sentimentos, defini-los, descrevê-los, mas os sentimentos ficam inexplicados. O fato que causa a alegria nada produzirá em um outro; o objeto que ocasiona o medo de um produzirá a coragem de outro. As mesmas causas são seguidas de efeitos contrários. Isto não se dá em Física, mas se dá em metafísica. Isto se dá porque o sentimento é propriedade da alma, e as almas diferem entre si em sensibilidade, em impressionabilidade, em liberdade. A música, que é a causa secundária da harmonia percebida, penetra e transporta um e deixa o outro frio e indiferente. É que o primeiro está em estado de receber a impressão produzida pela harmonia e o segundo num estado contrário; escuta o ar que vibra, mas não compreende a idéia que ele lhe traz. Este chega ao aborrecimento e adormece, aquele ao entusiasmo e chora. Evidentemente, o homem que goza as delícias da harmonia é mais elevado, mais depurado que aquele que ela não pode penetrar, sua alma está mais apta para sentir; desprende-se mais facilmente e a harmonia a ajuda a se desprender; ela a transporta e lhe permite ver melhor o mundo moral. De onde se deve  concluir que a música é essencialmente moralizadora, desde que leva a harmonia às almas e a harmonia as eleva e as engrandece.

     A influência da música sobre a alma, sobre o seu progresso moral, é reconhecida por todo o mundo. Mas a razão dessa influência geralmente é ignorada. Sua explicação está inteiramente neste fato: a harmonia coloca a alma sob o poder de um sentimento que a desmaterializa. Tal sentimento existe em um certo grau, mas se desenvolve sob a ação de um sentimento similar mais elevado. Aquele que é privado desse sentimento a ele é trazido gradativamente; também ele acaba por se deixar penetrar e arrastar ao mundo ideal, onde por um instante esquece os grosseiros prazeres, que prefere à divina harmonia.

     E agora, se se considerar que a harmonia sai do conceito do Espírito, deduzir-se-á que, se a música exerce uma influência feliz sobre a alma, a alma, que a concebe, também exerce sua influência sobre a música. A alma virtuosa, que tem a paixão do bem, do belo, do grande, e que adquiriu harmonia, produzirá obras-primas capazes de penetrar as almas mais encouraçadas e de comovê-las. Se o compositor estiver terra-a-terra, como expressará a virtude que desdenha, o belo que ignora e o grande que não compreende? Suas composições serão o reflexo de seus gostos sensuais, de sua leviandade, de sua despreocupação. Elas serão ora licenciosas, ora obscenas, ora cômicas e ora burlescas; comunicarão aos ouvintes os sentimentos que exprimirem, e os perverterão, em vez de os melhorar.

     Moralizando os homens, o Espiritismo então exercerá uma grande influência sobre a música. Produzirá mais compositores virtuosos, que comunicarão suas virtudes, fazendo ouvir suas composições.

     Rirão menos, chorarão mais; a hilaridade dará lugar à emoção; a feiúra dará lugar à beleza e o cômico à grandeza.

     Por outro lado, os ouvintes que o Espiritismo tiver preparado para receber facilmente a harmonia, ouvindo música séria, sentirão um verdadeiro encanto. Desdenharão a música frívola e licenciosa, que se apodera das massas. Quando o grotesco e o obsceno forem deixados pelo belo e pelo bem, desaparecerão os compositores dessa ordem; porque, sem ouvintes, nada ganharão, e é para ganhar que se sujam.

     Oh! sim, o Espiritismo terá influência sobre a música! Como não seria assim? Seu advento mudará a arte, depurando-a. Sua fonte é divina, sua força o conduzirá por toda a parte onde houver homens para amar, para se elevar e para compreender. Tornar-se-á  o ideal e o objetivo dos artistas. Pintores, escultores, compositores, poetas lhe pedirão suas inspirações; e ele lhas fornecerá, porque é rico; porque é inesgotável.

     O Espírito do maestro Rossini, em nova existência, virá continuar a arte que considera como a primeira de todas: o Espiritismo será o seu símbolo e o inspirador de suas composições.

Gioacchino Antonio Rossini - compositor italiano (Pezaro, 1792 - Paris, 1868). Autor de 39 óperas, dentre as quais O Barbeiro de Sevilha, Otelo, Cinderela e Guilherme Tell. (Notas do compilador).    INÍCIO                                PRÓXIMO

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