Gioacchino Antonio Rossini

A MÚSICA E AS HARMONIAS CELESTES I

(Mensagem do Espírito Gioacchino Antonio Rossini a Allan Kardec - Revista Espírita -  05/01/1869)

     Senhores, tendes razão de me lembrar minha promessa, porque o tempo, que passa tão rapidamente no mundo do espaço, tem minutos eternos para aquele que o sofre sob o amplexo da provação! Há alguns dias, algumas semanas, eu contava como vós; cada dia acrescentava toda uma série de vicissitudes às vicissitudes já suportadas, e a taça  se ia enchendo piano, piano.

     Ah! não sabeis quanto um renome de grande homem é difícil de suportar! Não desejeis a glória; não sejais conhecidos; sede úteis. A popularidade tem os seus espinhos e, mais de uma vez, vi-me ferido pelas carícias demasiado brutais da multidão.

     Hoje a fumaça do incenso não mais me inebria. Pairo sobre as mesquinharias do passado, e é um horizonte sem limites que se estende ante a minha insaciável curiosidade. Assim, as horas caem aos punhados na ampulheta secular, e procuro sempre, sempre estudo sem jamais contar o tempo decorrido.     Sim, eu vos prometi. Mas quem pode gabar-se de cumprir uma promessa, quando os elementos necessários para cumpri-la pertencem ao futuro? O poderoso do mundo, ainda sob o bafejo da adulação dos cortesãos, pode ter querido enfrentar o problema corpo a corpo; mas não era mais de uma luta fictícia que se travava aqui; não havia mais bravos, brilhantes aclamações para me encorajar e superar minha fraqueza. Era, e é ainda, um trabalho sobre-humano a que me entreguei. É contra ele que luto sempre, e, se espero triunfar, não obstante não posso dissimular o meu esgotamento. Estou vencido... em apuros!... Repouso antes de explorar de novo, mas, se hoje não posso falar-vos do que será o futuro, talvez possa apreciar o presente; ser crítico, depois de ter sido criticado. Vós me julgais e não me aprovareis se eu não for justo, o que tentareis fazer, evitando personalismos.

     Por que, então, tantos músicos e tão poucos artistas? Tantos compositores e tão poucas verdades musicais? Ai de mim! é que não há, como se pensa, imaginação que a arte possa criar; não há outro mestre e outro criador senão a verdade. Sem ela não há nada, ou só há uma arte de contrabando, pedras falsas, contrafação. O pintor pode dar a ilusão e mostrar branco onde não pôs senão uma mistura de cores sem nome; as oposições das nuanças criam uma aparência e foi assim, por exemplo, que Horace Vernet pôde fazer parecer de um branco brilhante um magnífico cavalo baio.

     Mas a nota só tem um som. O encadeamento dos sons não produz uma harmonia, uma verdade senão quando as ondas sonoras se fazem o eco de uma outra verdade. Para ser músico, não basta alinhar notas sobre um pentagrama, de maneira a conservar a justeza das relações musicais; assim só se consegue produzir ruídos agradáveis; mas é o sentimento que nasce sob a pena do verdadeiro artista, é ele que canta, chora, ri... Assovia na folhagem com o vento tempestuoso; salta com a vaga espumante; ruge com o tigre furioso!... Mas para dar alma à música, para fazê-la chorar, rir, uivar, é preciso que ele próprio tenha experimentado esses diferentes sentimentos, dores, alegria, cólera!

     É com o sorriso nos lábios e a incredulidade no coração que personificais um mártir cristão? Será um cético do amor que fará um Romeu, uma Julieta? É um vivedor despreocupado que criará a Margarida de Fausto? Não! É preciso a paixão inteira àquele que faz vibrar a paixão!... E eis porque, quando se riscam tantas folhas, as obras são tão raras e as verdades excepcionais: é que não se crê, é que a alma não vibra. O som que se escuta é o do ouro que tine, do vinho que crepita!... A inspiração é a mulher que exibe uma beleza falsa; e quando não se possui senão defeitos e virtudes fingidas, não se produz senão uma obra embutida, uma falsificação musical. Arranhai a superfície e logo encontrareis a pedra.

     O silêncio que guardei sobre a pergunta que me dirigiu o Mestre da doutrina espírita foi explicado. Era conveniente, antes de abordar esse assunto difícil, recolher-me, lembrar-me e condensar os elementos que me estavam à mão. Eu não tinha que estudar música, tinha apenas que classificar os argumentos com método, a fim de apresentar um resumo capaz de dar uma ideia de minha concepção sobre a harmonia. Esse trabalho, que não fiz sem dificuldade, está terminado, e estou pronto a submetê-lo à apreciação dos espíritas.

     A harmonia é difícil de definir. Muitas vezes confundem-na com a música, com os sons resultantes de um arranjo de notas e das vibrações dos instrumentos produtores desse arranjo. Mas a harmonia não é isto, como a chama não é a luz. A chama resulta da combinação de dois gases: é tangível; a luz que ela projeta é um efeito dessa combinação e não a própria chama: ela não é tangível. Aqui o efeito é superior à causa. Assim com a harmonia. Ela resulta de um arranjo musical, é um efeito igualmente superior à causa: a causa é brutal e tangível; o efeito é sutil e não é tangível.

     Pode-se conceber a luz sem chama e compreende-se a harmonia sem música. A alma é apta a perceber a harmonia fora de todo concurso de instrumentação, como é apta a ver a luz fora de todo concurso de combinações materiais. A luz é um sentido íntimo que a alma possui. Quanto mais desenvolvido esse sentido, melhor ela percebe a luz. A harmonia é igualmente um sentido íntimo da alma: é percebida em razão do desenvolvimento desse sentido. Fora do mundo material, isto é, fora das causas tangíveis, a luz e a harmonia são de essência divina; nós as possuímos em razão dos esforços feitos para adquiri-las. Se comparo a luz e a harmonia, é para melhor me fazer compreender e, também, porque essas duas sublimes satisfações da alma são filhas de Deus, e, por consequência, são irmãs. 

     A harmonia do espaço é tão complexa, tem tantos graus que eu conheço, e muitos mais ainda, que me são ocultos no éter infinito, que aquele que estiver colocado a uma certa altura de percepções, como que é tomado de admiração ao contemplar essas harmonias diversas, que constituiriam, se fossem reunidas, a mais insuportável cacofonia; ao passo que, ao contrário, percebidas separadamente, constituem a harmonia particular a cada grau. Essas harmonias são elementares e grosseiras nos graus inferiores; levam ao êxtase nos graus superiores. Tal harmonia que fere um Espírito de percepções sutis, deslumbra um Espírito de percepções grosseiras; e quando ao Espírito inferior é dado deleitar-se nas delícias das harmonias superiores, é colhido pelo êxtase e a prece o penetra; o encantamento o arrasta às esferas elevadas do mundo moral; vive vida superior à sua e desejaria continuar a viver sempre assim. Mas quando a harmonia cessa de invadi-lo, desperta, ou se se quiser, adormece. Em todo o caso, volta à realidade de sua situação, e nos lamentos que deixa escapar por ter descido, se exala uma prece ao Eterno, pedindo forças para subir. É para ele um grande motivo de emulação.

     Não tentarei dar a explicação dos efeitos musicais que produz o Espírito agindo sobre o éter. O que é certo é que o Espírito produz os sons que quer, e não pode querer o que não sabe. Ora, então, aquele que compreende muito, que tem a harmonia em si, que dela está saturado, que goza, ele próprio, o seu sentido íntimo, esse nada impalpável, essa abstração que é a concepção da harmonia, age quando quer sobre o fluido universal que, instrumento fiel, reproduz o que o Espírito concebe e quer. O éter vibra sob a ação da vontade do Espírito; a harmonia que este traz em si se concretiza, por assim dizer; exala-se terna e suave como o perfume da violeta, que ruge como a tempestade, ou rebenta como o raio, ou se lamenta como a brisa; é rápida como o relâmpago, ou lenta como a nuvem; é quebrada como um soluço, ou úmida como a relva; é amontoada como uma catarata, ou calma como um lago; murmura como um regato ou estruge como uma torrente. Ora tem a agreste aspereza das montanhas, ora a frescura de um oásis; é sucessivamente triste e melancólica como a noite, animada e alegre como o dia; é caprichosa como a criança, consoladora como a mãe e protetora como o pai; é desordenada como a paixão, límpida como o amor e grandiosa como a Natureza. Quando ela chega a este último termo, confunde-se com a prece, glorifica a Deus e leva ao deslumbramento aquele mesmo que a produz ou a concebe.     INÍCIO

(Esta comunicação do Espírito Rossini continua no arquivo A MÚSICA E AS HARMONIAS CELESTES II)

Pintura de Albrecht Dürer