Reprodução obtida pelo compilador de postal de aquarelas antigas referindo-se ao assassinato, na fogueira, de Jan Huss.

 

A EXECUÇÃO DE JAN HUSS*

 

(Trecho de Os Luminares Tchecos, obra ditada pelo espírito J. W. Rochester em 1912).  

     No dia 6 de julho de 1415, um sábado, o povo se aglomerava desde a manhã em volta do templo de Constança. Nesse dia aguardava-se a sentença de Huss; a solenidade deveria ser notável e reuniu grande massa de curiosos.

     A espera justificou-se. Bispos e até simples prelados chegavam em luxuosos trajes; atrás deles, seguiam cardeais vestindo púrpura e montando cavalos ricamente enfeitados, cercados de cavaleiros, pajens e corte clerical. Seguiram-se depois representantes de diversos povos, príncipes, duques e outras personalidades. Por fim, chegou Sigismundo1 acompanhado por altos funcionários do império.

     O interior do templo tinha uma aparência solene. Sobre o  trono elevado e portando a manta imperial, sentava Sigismundo, à sua volta estavam em pé: o “curfiurista Ludovico da Bavária - com a “derjava2 na mão, o prefeito de Nuremberg, Frederico - com o cetro, o duque Henrique da Bavária - com a coroa e um magnata húngaro - com a espada.

     A multidão de prelados, nobres e cavaleiros em roupagens pomposas e multicoloridas formaram uma moldura brilhante e colorida em volta do trono.

     No centro do templo foi construído um palanque de madeira. Em cima dele, num poste havia uma vestimenta sacerdotal completa.

     Durante a missa, os guardas trouxeram Huss mas mantiveram-no perto da entrada, para que a presença do “torpe” herege não contaminasse o sagrado ofício, ao fim do qual o bispo de Lodi subiu ao púlpito. Somente então fizeram o prisioneiro entrar e o colocaram perto do palanque. Huss caiu de joelhos e rezou em silêncio durante o sermão que versava sobre as palavras do apóstolo Paulo “que se elimine o corpo pecaminoso” e que se destacava pela extraordinária crueldade. O orador convocava o imperador a terminar a sua missão e eliminar, sem piedade, a heresia e os hereges. Depois deste discurso “puramente cristão”, o bispo recitou a decisão do concílio convocado e inspirado pelo Espírito Santo - que obrigava a todos os presentes, sob pena de maldição e prisão, a não interromper o silêncio com quaisquer expressões de sentimentos, palavras, aplausos, ou qualquer outro movimento corporal.

     Em seguida levantou-se Henrique Piron, o síndico do concílio3 e exigiu, em nome deste, a condenação de Huss e seus ensinamentos.

     O infeliz acusado foi então conduzido para cima do palanque e colocado à vista de todos. Começou a leitura do ato de acusação, contendo os artigos criminosos de Wyclif4 ou outros, extraídos das obras de Huss, assim como os depoimentos de testemunhas, sem esquecer a acusação imbecil de que Huss dizia-se a quarta pessoa da Santíssima Trindade.

     Ao ouvir esta mistura de mentiras, ideias deturpadas e calúnias que transpiravam ódio, o infeliz ficou desesperado, quis protestar, justificar-se. Mas, o cardeal Zabarella interrompeu-o e ordenou-lhe severamente para calar-se. Huss, então, ajoelhou-se e começou a orar em voz alta pelos inimigos, entregando o seu destino ao Juiz Celestial e isto provocou nos presentes somente riso e zombaria.

     Quando finalmente terminou a longa lista de acusações os bispos, designados para realizar a cerimônia de retirar a tonsura de Huss, propuseram-lhe renunciar aos seus ensinamentos. Ele respondeu humildemente, mas com firmeza, que estaria sempre pronto a renunciar a enganos desde que estes sejam provados pelas Escrituras e que, por se considerar inocente de heresias, ele compareceu ao concílio acreditando estar protegido pela promessa do imperador de defendê-lo.5

     A triste cerimônia começou imediatamente. Os bispos vestiram os paramentos clericais em Huss e puseram em suas mãos um cálice como se ele fosse rezar uma missa; em seguida, pela última vez, mandaram-no renunciar. O infeliz, com lágrimas nos olhos, respondeu que a sua consciência não lhe permitia postar-se como mentiroso diante do altar de Deus.

     Depois disso, o cálice foi arrancado de suas mãos e retiraram-lhe os paramentos clericais, pronunciando exorcismos. Finalmente, iniciaram a tonsura e discutiram entre si se deviam cortar seus cabelos com navalha ou tesoura. Huss dirigiu-se ao imperador:

     - Acalme-os, Alteza - disse ele sorrindo. - Pois não conseguem se decidir como concluir a minha vexação!

     Por fim, decidiram utilizar a tesoura. Depois disso colocaram sobre a cabeça de Huss uma carapuça de papel que tinha demônios pintados e escrito em letras garrafais: “Haeresiarcha” (heresiarca: chefe de uma seita herética).

     - O Senhor usou por mim uma coroa de espinhos e, por amor a Ele, ficarei feliz em usar este chapéu vexatório - respondeu humildemente Huss a este escárnio.

     A cerimônia foi concluída com as palavras do arcebispo de Milão:

     - A partir de agora, a Igreja nada tem em comum com você: ela entrega seu corpo ao poder mundano e sua alma - ao diabo!

     Conforme o “zertsalo”6 da Suábia, os hereges devem ser entregues às autoridades civis e por isso os bispos dirigiram-se ao imperador.

     O santo concílio de Constança entrega ao poder civil Jan Huss “detonsurado” e expulso da Igreja.

     O imperador transmitiu-o a Ludovico, o “curfiurista” da Bavária.

     - Caro duque! Pegue este homem e, em meu nome, execute-o conforme deve ser feito com os hereges.

     Ludovico, por sua vez, entregou-o aos carrascos:

     Peguem Jan Huss que, por decisão do nosso todo misericordioso governante rei de Roma e por minha ordem, deve ser queimado.

     Com as mãos amarradas, cercado por quatro guardas, sob uma escolta de 800 homens armados e acompanhado por enorme multidão, Huss dirigiu-se ao local da execução.

     Seu rosto magro estava pálido, mas tranquilo e os olhos cheios de fé estavam voltados para o céu. Ele continuou a orar em voz alta e o povo, comovido pela força de seu espírito e beatitude, expressava-lhe abertamente a sua solidariedade:

     - Não conhecemos a sua culpa, mas ele reza como um verdadeiro justo.

     Quando Huss passava perto do palácio do bispo e viu no quintal uma fogueira acesa que queimava suas obras, somente sorriu: ele sabia que o fogo não iria eliminar as verdades anunciadas por ele.

     O local da execução foi escolhido no campo entre o arrabalde e os jardins do castelo de Gottliben. Ao ver a fogueira montada, Huss hesitou. Será que o corpo impotente tremeu antecipando o sofrimento e a destruição? Entretanto, a hesitação durou um único instante: o corajoso espírito do mártir venceu novamente. Ajoelhando-se ele elevou as mãos amarradas aos céus e disse com fervor:

     - Senhor Jesus, meu Mestre Divino! Por Seu Evangelho, pela verdade que preguei, aceito com alegria e docilmente este sofrimento. Não me deixe nesta grande hora e me ajude até o fim.

     As ondas de massa humana rolavam lentamente e com frequentes paradas pelas sinuosas ruas da cidade e, ao chegar ao local da execução, espalhavam-se num largo círculo em volta da fogueira.

     Huss, naquele instante, pensava na última confissão que o povo propunha ao condenado e à qual se opunha um sacerdote de capa verde e brilhante, que gritava:

     - Um herege não pode se confessar nem confessar ninguém.

     Um outro sacerdote gritava com o mesmo entusiasmo que se Huss desejava confessar-se então devia antes renunciar à heresia.

     A voz tranquila e clara do condenado soou em resposta:

     - Sou inocente de qualquer pecado mortal” E, no momento em que me preparo para aparecer diante do Senhor, não irei pagar meus pecados com um falso juramento.

     Não prestando mais atenção aos sacerdotes, Huss pediu permissão para despedir-se de seus carcereiros e recebendo a autorização, abraçou e beijou-os, agradecendo a sua bondade para com ele. Depois, ele quis falar algumas palavras ao povo, mas Palatin opôs-se a isso e ordenou apressar a execução.

     - Senhor Jesus, receba o meu espírito em Suas mãos e perdoe a todos os meus inimigos - orava Huss, elevando os olhos para o céu.

     A carapuça de papel caiu no chão e um dos soldados vestiu-a nele novamente, exclamando: - que ela queime junto com os demônios que você serviu tão bem.

     O olhar de Huss após passar tristemente pelas fileiras da multidão à sua volta, voltou-se, pois o carrasco e seus ajudantes começaram a arrancar suas roupas.

     Prenderam suas mãos nas costas com corda molhada, amarraram-no no poste e passaram uma corrente untada com fuligem em volta do pescoço. Depois, começaram a colocar à sua volta, lenha untada com piche entremeada por tufos de feno. Durante esta preparação lúgubre ele permaneceu calmo; talvez nunca antes o seu espírito heroico esteve tão firme e ao mesmo tempo dócil e cheio de fé.

     Evitando olhar para a cruel multidão que exigia que ele fosse colocado de frente para o ocidente, pois conforme diziam - o herege não pode olhar para o oriente - Huss olhou para o céu e o seu olhar, de repente, acendeu-se de radiante felicidade.

     Por cima da fogueira ele viu a grandiosa imagem do primeiro mestre da Boêmia; seus profundos e severos olhos olhavam o mártir com amor e, com a cruz que segurava na mão, ele apontava para o céu.

     Absorto pela visão, Huss não percebia que havia sido rodeado pela lenha até o pescoço. De repente, a voz de alguém arrancou-o do esquecimento.

     Era o grande marechal do império, conde Pappenheim que chegara, em nome de Sigismundo - tentando pela última vez convencê-lo a renunciar para salvar a vida.

     - Para que o senhor vem constranger a grande paz da minha alma? Nada tenho para renunciar pois nunca professei e nem ensinei heresias de que me acusaram mentirosamente. Ficarei feliz em marcar com o próprio sangue as verdades evangélicas que ensinei oralmente e por escrito - respondeu Huss com brandura mas firmemente.

     Quando o fogo começou a crepitar ouviu-se das chamas uma voz sonora cantando uma oração. Este canto, em meio ao horrível sofrimento, anunciando a vitória do espírito sobre a carne, agiu de forma deprimente sobre a multidão que estancou, muda de surpresa. Os olhares de todos estavam fixos sobre a coluna de fumaça e fogo de onde não se ouvia nem gemidos, nem lamentos, nem gritos. Somente a melódica invocação ao Pai Celestial.

     De repente, a voz do mártir calou-se - a fumaça soprou sobre o seu rosto. Durante um certo tempo dava para ver que seus lábios se mexiam, em seguida a cabeça pendeu sem vida.

     Quando a lenha queimou e apareceu o corpo carbonizado do executado, os carrascos derrubaram o poste junto com o cadáver e começaram a cortá-lo em pedaços. Quebraram o crânio e acenderam uma nova fogueira para eliminar mais rapidamente os restos do infeliz. O coração do mártir, que não fora atingido, os bárbaros inicialmente chicotearam com varas, depois furaram e começaram a assar. Até as roupas de Huss foram queimadas por ordem de Palatino e as cinzas, carvões e tudo o que restou foi jogado no rio Reno.

(*) = Jan Huss, reformador tcheco (Husinec, Boêmia, 1369 - Constança, 1415). Padre católico e reitor da Universidade de Praga. Criticava com tenacidade a venda de indulgências (salvar a alma em troca de riquezas materiais); era adepto das doutrinas de Wyclif, foi excomungado em 1412, depois queimado vivo, em consequência da condenação do concílio de Constança, apesar do salvo-conduto que o imperador Sigismundo lhe dera. Segundo informes espirituais, Allan Kardec teria sido Jan Huss.

1 - Sigismundo de Luxemburgo (Nüremberg, 1368 - Znaim, 1437), rei da Hungria (1387-1437), rei dos romanos (1411-1433), imperador germânico (1433-1437) e rei da Boêmia (1419-1437). 2 - Esfera encimada com uma cruz, simbolizando a nação; 3 - Concílio de Constança (1415/1418; 4 - Inglês, que foi o primeiro a ter ideias reformistas. Huss o seguiu, porém com mais segurança e intensidade. Lutero, 100 anos depois de Huss, baseou-se nas ações dos dois para criar a  sua seita. 5 - Sigismundo havia dado a Huss um salvo-conduto para sair de Praga, ir a Constança e retornar com segurança. Todavia, rendeu-se ao poder do clero e compartilhou do assassinato de Jan Huss; 6 - Coletânea de obras morais que ditavam os costumes a serem seguidos em certas situações. (Notas do compilador).

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